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Maestro - Bradley Cooper

A SINFONIA DE UMA VIDA

António Roma Torres

 

Segunda longa-metragem dirigida por Bradley Cooper, depois de Assim Nasce Uma Estrela, remake de dois anteriores filmes com Judy Garland e Barbra Streisand, agora com uma surpreendente Lady Gaga, Maestro é um filme onde desempenha também o papel principal, depois já de nomeações para o oscar em dois filmes dirigidos por David O. Russell, Guia para um Final Feliz e Golpada Americana, e outra também em Snipper Americano de Clint Eastwood.

E na realidade Bradley Cooper chega a Maestro na plenitude dos seus talentos multifacetados, não só de realizador e actor, mas ainda de co-produtor (nomeado para o oscar nessa categoria por Joker, filme em que não teve outra intervenção), ou em Maestro como co-argumentista com Josh Singer, que ganhara o oscar em O Caso Spotlight sobre a investigação jornalística dos abusos sexuais na Arquidiocese de Boston, e escrevera depois The Post para Steven Spielberg, também em ambiente jornalístico, e O Primeiro Homem na Lua para Damian Chazelle, também um biopic sobre o astronauta Neil Armstrong.

Pode portanto dizer-se que o domínio integrado de tantas funções caracteriza a paixão pela condução de orquestra que Bradley Cooper confessa acompanhá-lo desde os oito anos quando pediu uma batuta como prenda.

Maestro é assim muito mais que um biopic sobre a figura fascinante de Leonard Bernstein, pianista, director de orquestra, compositor e vedeta da televisão com os programas de divulgação Concerto para Jovens, iniciados a 18 de Fevereiro de 1958, apenas duas semanas depois de se ter tornado director artístico da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, aliás uma tradição da orquestra que remontava já a 1924, mas com a transmissão televisiva vai adquirir uma espantosa divulgação e popularidade, prolongando-se, com algumas interrupções, até 1972.

O filme teve uma pré-produção bastante rigorosa, prolongada por seis anos, tendo no entanto passado de mão em mão, com Bradley Cooper já de início apontado como protagonista, até a realização lhe ter sido também entregue após as provas dadas em Assim Nasce uma Estrela, filme onde a música rock desempenhava também um grande papel numa ficção que conjugava com grande emoção e espectáculo, a ascenção de uma vedeta (Lady Gaga, numa interpretação extraordinária) e o ocaso de uma outra (interpretada pelo próprio Bradley Cooper).

Na realidade o primeiro realizador ligado ao projecto, e identificado no genérico como co-produtor executivo, foi Martin Scorsese que certamente teria prolongado aqui a temática da confissão que o tem ocupado desde Silêncio, passando por O Irlandês, filme por que optou numa grande operação promocional da Netflix que o divulgou em exclusivo em vários países, inclusive em Portugal, e se repete de novo no mais recente Os Assassinos da Lua de Flores, e a dupla vida sexual do personagem, numa conjugalidade aberta e uma homossexualidade fora dos holofotes públicos propiciava.

Scorsese deixou o projecto nas mãos de Steven Spielberg que, no entanto, acabaria por após um intervalo pouco criativo depois do falhanço de Ready Player One assinar em homenagem a Bernstein um remake de West Side Story, êxito da Broadway que Robert Wise co-dirigira, com o coreógrafo Jerome Robbins, e arrecadara dez oscars, tendo Scorsese explicitamente considerado Wise como "o Spielberg dos anos 50 e 60", particularmente depois de O Dia em que a Terra Parou, e deixou assim o caminho aberto na direcção do filme a Bradley Cooper.

E Bradley Cooper fez do filme uma verdadeira sinfonia conjugando todos os sons, como a própria etimologia da palavra exprime, e todos os outros elementos, fazendo jus à epígrafe de Bernstein que abre o filme: "uma obra de arte não responde a questões, provoca-as; e o seu significado essencial está na tensão entre respostas contraditórias".

Para fazer justiça a Maestro e ao empolgante tratamento da vida do condutor de orquestra e compositor Leonard Bernstein devemos começar pelo tratamento da música que em certa medida é diegética, isto é, entendida como inerente às próprias cenas em que o maestro dirige a orquestra (obras suas, mas também nomeadamente de Beethoven ou Mahler em que Bernstein era uma autoridade inigualável), mas é também extra-diegética, isto é, música de fundo como comentário das próprias cenas, sendo que toda a banda sonora do filme recorre à música do próprio Bernstein, criteriosamente escolhida por Bradley Cooper.

Aliás a construção dramática de Maestro obedece a três partes, um pouco como movimentos numa sinfonia concertante, no conceito inicial anterior à transformação que Haydn lhe imprimiu, ou ao nível cinematográfico marcadas pelas características do cinema na própria evolução cronológica da imagem e do formato do ecrã, em 1:1.3, primeiro a preto e branco e posteriormente a cores, nas duas partes principais, para terminar num epílogo em ecrã largo após a morte de Felicia Montealegre (Carey Mulligan), procurando caracterizar, mais do que os marcos consensuais da sua carreira artística pública, o mood da vida privada do casal e da vida familiar face à ameaça das ligações homossexuais, primeiro escondidas e depois já mais à vista, que Leonard Bernstein (Bradley Cooper) no entanto não assumia publicamente, e correspondiam à envolvência no mundo da criação musical, nomeadamente com o clarinetista David Oppenheim (Matt Bomer), com quem manteve nos anos 40 uma relação antes do casamento, e ele próprio casaria três vezes (correspondente à primeira parte do filme), e com o musicólogo e linguista, director de programas de uma estação de rádio de San Francisco, trinta anos mais novo, Thomas Cothran (Gideon Glick), com quem viveu nos anos 70 por um curto período de separação antes de voltar para casa quando do diagnóstico do cancro de pulmão com que Felicia acaba por morrer em 1978 (correspondente à segunda parte), e no epílogo com alguma intimidade com um quase anónimo discípulo, William (Jordan Dobson), da sua master class sobre direcão de orquestra.

O epílogo precisamente retoma a entrevista que abre o filme, onde Bernstein emotivamente evoca a falta que sente de Felicia, e corresponde ao período final da vida de Bernstein já depois da morte dela, e de ter antes deixado a direcção da Filarmónica de Nova Iorque no final da década de 60.

De uma forma muito interessante Bradley Cooper encerra o percurso do director de orquestra - desde a chamada matutina para substituir Bruno Walter, com gripe, na direcção da Filarmónica sem tempo sequer de ensaiar num célebre concerto de 1943 até ao aplauso como director de orquestra seguido de idêntico aplauso de Felicia perante a plateia da Broadway e depois o próprio olhar distanciado de Felicia com que encerra a primeira parte - e do compositor - presente no momento central da segunda parte introduzido pelo prólogo da versão sinfónica de West Side Story e a conclusão de Mass, coincidindo de certa forma com o momento mais difícil do casamento - com a sua faceta de professor ensinando condução da orquestra na 8ª Sinfonia de Beethoven, já no final do filme e que de certa forma também complementar da recriação sob a direcção de Bradley Cooper do célebre concerto da Sinfonia nº 2 - "Ressureição" de Mahler na Ely Cathedral em Londres em 1973.

Aí há um efeito curioso com o alargamento do ecrã e a música diegética dos R.E.M. que de certa maneira datam, ou legendam se quisermos, os três últimos anos de vida do maestro - "It's the End of the World as We Know It (And I Feel Fine)", uma letra que lista vários LBs desse mundo, incluindo Bernstein e o líder soviético Brejnev, foi lançada em 1987 e Bernstein dirigiu um célebre concerto da 9ª Sinfonia de Beethoven em Berlim em 25 de Dezembro de 1989, mês e meio após a queda do Muro e menos de dez meses antes da sua morte - e estabelecem uma directa ligação com a cena anterior da saída de Bernstein e os três filhos no carro da casa do Connecticut, a própria casa da família que serviu de cenário sob orientação do production designer Kevin Thompson, já tendo morrido a mãe, como o pai de família e marido que o maestro quis voltar a ser durante a doença da mulher.

A interpretação de Bradley Cooper como Leonard Bernstein é notável não só em alguns momentos dramáticos, como na conversa com a filha Jamie (Maya Hawke), negando fundamentos para os boatos sobre a sua orientação gay, como nos momentos em que ele próprio dirige a orquestra, onde beneficiou aliás do coaching do maestro quebequense Yannik Nézet-Séguin. É natural, no entanto, que esse feito não o projecte para o oscar de interpretação, como aliás sucedeu no ano transacto em Tar com Cate Blanchett, que também dirigia a orquestra em vários trechos de Mahler, gravados para a Deutche Gramophone como a banda sonora de Maestro, interpretando uma personagem que no universo ficcional se apresentava como discípula de Bernstein. Acresce que a aparência física, bastante próxima de Bernstein, muito graças à maquilhagem de Kazu Hiro, vencedor de dois oscars na categoria, um dos quais pela caracterização de Churchill na interpretação de Gary Oldman que lhe valeu o oscar em A Hora Mais Negra, parece aqui propor mais a imitação do que a interpretação, em que por seu lado Carey Mulligan lhe dá uma réplica segura no papel de Felicia (de certa maneira como já sucedia em Assim Nasce uma Estrela com Lady Gaga parecendo destacar-se na contracena com o actor-realizador).

É aliás a imagem de Felicia a fumar um cigarro com boquilha, de frente a observar estática os aplausos após a Sinfonia nº5 de Mahler dirigida por Leonard Bernstein de que ouvimos o Adagietto, e depois de costas à janela numa sala cheia de gente no apartamento de Nova Iorque, que vai fazer a transição entre as duas partes anteriores do filme. Isso expressa bem a opção de Cooper, centrando a narrativa no casamento com Felicia, nas alegrias e vicissitudes da conjugalidade e da responsabilidade paternal, ou protectora quando Felicia adoece gravemente, na qual teve o empenhamento dos três filhos do casal na preparação do filme. A sexualidade e a sua expressão gay é, no entanto, um traço forte, constantemente presente, numa tensão vivenciada na história individual. Alguns amigos e testemunhas comentaram que Bernstein terá sido "um gay que se casou", outros preferem designá-lo como bissexual, mas o filme de Bradley Cooper procura fugir de simplificações ou interpretações falsamente compreensivas.

O filme arranca num tempo, se quisermos usar uma expressão musical, allegro vivace, vibrante, com uma grande energia contagiante, mas onde se percebem algumas sombras: externas, as de um clima pós-guerra de suspeitas generalizadas do macchartyismo, logo evidenciada na suite sinfónica de Há Lodo no Cais, de Elia Kazan, música que mereceu uma nomeação para o oscar ao Bernstein compositor a afirmar-se pelo interior no performer extrovertido que a sua aura de director de orquestra já impusera, numa clivagem que o próprio nos diálogos classifica como esquizofrénica; mas também internas, bem expressas na ambiguidade sexual e afectiva de Fancy Free (entram três marinheiros) e de On The Town/Um Dia em Nova Iorque de Stanley Donen e Gene Kelly ("New York, New York"). E a zona de conflito expressa-se tanto na relação séria com Felicia, nada parecida com um simples casamento de fachada - "não imaginas como precisas de mim", afirma ela - como na indecisão entre a música clássica, mais austera, e a incorporação de outras expressões mais livres que os musicais da Broadway e de Hollywwood acolhem, e que o seu mentor inicial Serge Koussevitzky (Yasen Peyankov), maestro russo exilado e director na Orquestra Sinfónica de Boston, desafia numa conversa ao ar livre em que lhe recorda a descriminação que as raízes judaicas comuns trariam ao desenvolvimento da sua carreira a partir da sua experiência de jovem músico em Moscovo.

A segunda parte, a cores, é mais um adagio, onde o ensaio coral de Make Our Garden Grow de Candide, se prolonga no Prólogo de West Side Story e Pax Communio de Mass enquanto, já no período de doença de Felicia, A Quiet Place-Poslude (sequela de Trouble in Tahiti, ópera sobre uma atribulada vida de casal, cujo interlúdio é aflorado na primeira parte) e principalmente o mais atonal Prólogo da Sinfonia nº 2 - The Age of Anxiety, inspirada num poema de W. H. Auden, vencedor do Pulitzer de 1948, num momento sentados na relva costas contra costas remetendo para uma idêntica cena da primeira parte, constituindo um comentário sonoro da excelente interpretação de Carey Mulligan. Assim o filme opta muitas vezes por substituir a progressão dramática por momentos de significativa expressão musical e cinematográfica.

A uma observação mais superficial poderia pressupor-se uma estrutura bipolar, alternando períodos de excitação com fases de tristeza, mas Bradley Cooper mostra-nos a personalidade própria de um génio em busca constante da grandeza e da fidelidade a si mesmo, como se uma pequena parte não lhe pudesse bastar. E é Felicia quem melhor explica isso no final da primeira parte numa conversa com a irmã de Leonard, Shirley Bernstein (Sarah Silverman) - "cada pessoa deseja ajustar-se a ela própria mas uma personalidade forte imposta de fora é como se fosse uma forma de morte; assim que vejo que isso o faz sofrer não vou matar-me por isso e se for sacrifício prefiro desaparecer" - como se quisesse abarcar "tudo em todo o lado ao mesmo tempo", título do filme sino-americano mais ou menos adolescente que no ano passado triunfou nos oscars da Academia Americana, a que pelo que se viu do insucesso então de Tar e do esquecimento do filme nos recentes Globos de Ouro, Maestro não deve aspirar.

É essa reflexão sobre a morte, e como se pode continuar a viver, que Bernstein faz no início de um ensaio com público da 14ª Sinfonia de Shostakovich - um conjunto de poemas de Garcia Lorca, Apollinaire e Rilke, para soprano, baixo e uma pequena orquestra de cordas com percussão - que o espectador aliás não chega a ouvir, numa cena que surge no filme logo após uma grande discussão do casal no apartamento de Nova Iorque onde Bernstein chega atrasado no Dia de Acção de Graças, filmada num longo plano sequência de conjunto embora corresponda a um diálogo entre os dois que na linguagem narrativa mais convencional do cinema se sustentaria num escorreito campo/contracampo que evidenciasse menos a câmara. O compositor soviético, até pela época em que viveu, experienciou talvez circunstâncias em que "o sol não cantou nele", e "quando o sol não canta em ti, então nada canta em ti, e se nada canta em ti, então tu não consegues fazer música" e esta cena retoma o preâmbulo que Bernstein fez na estreia da obra pela Filarmónica de Nova Iorque sob a sua direcção em 3 de Dezembro de 1976, segundo conta o New York Times dois dias depois.

A separação de Felicia e o diagnóstico da doença coincidem com esse período e o filme de Bradley Cooper muito coerentemente torna-se uma sinfonia da vida que a cada momento está ainda por viver.

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