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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Ninguém Duas Vezes - Jorge Silva Melo (1984)

O LUGAR DA UTOPIA

A. Roma Torres, A Grande Ilusão 2/3, pgs. 56 e 57

 

"Pedro tomando a palavra disse a Jesus:"Senhor, é bom estarmos aqui;Se quiseres farei aqui três tendas:Uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias"Mt, 17,4

 

É uma tentação abordar Ninguém Duas Vezes, de Jorge Silva Melo, a partir do paradoxo.

Procurar o lugar da utopia que etimologicamente é um não-lugar, lugar nenhum (veja-se a ilha de Thomas More), não é em si o menor dos paradoxos para que o filme de Jorge Silva Melo conduz as nossas reflexões.

O paradoxo, precisamente, é um ponto de distinção do homem católico face ao protestante (leia-se G. K. Chesterton) e essa problemática é mais cultural que propriamente religiosa parece ter aflorado a consciência de Jorge Silva Melo após uma estadia na Alemanha.

Do encontro desses dois mundos culturais distantes fôra já testemunho A Passagem ou A Meio Caminho, título em simesmo paradoxal do primeiro filme inédito, de Jorge Silva Melo onde se ensaiava uma reflexão sobre a revolução fracassada, "a meio caminho", a portuguesa de 1974-1975 mas também a dos socialistas utópicos e anarquistas do século passado como Georg Büchner (1818-1837), um jovem que não chegou a envelhecer, autor de Woyzeck, e empenhado na difusão do pensamento socialista entre os camponeses alemães.

O primeiro filme de Jorge Silva Melo era já uma reflexão nostálgica sobre o bloqueamento da actividade militante, mas também sobre o bloqueamento da própria linguagem na arte como no amor. E do amor e das artes fala também Ninguém Duas Vezes

Bernd (Michael König) é um pintor. Alemão, espera em Lisboa a chegada sempre adiada de Hannah (Charlotte Schwab). Ela pinta também; os seus quadros são um prolongamento dos temas de Bernd. Bernd e Hannah teriam vivido em Lisboa um amor feliz nos momentos eufóricos da revolução de Abril. Não volta o amor e não volta Abril. "É como se nunca tivesse estado aqui", comenta Bernd numa vivência de desrealização a que não é alheia a sua expressão plástica. "Ninguém duas vezes passa o rio/ porque os rios passam para morrer" (Luiza Neto Jorge, co-argumentista, em epígrafe no filme). Para morrer passa também o amor entre Carlos (Luís Miguel Cintra) e Mariana (Manuela Freitas). Ele é actor de uma companhia independente em vias de aceitar um convite para fazer As Bodas de Fígaro no Nacional. "Mas As Bodas de Fígaro é a esperança antes da Revolução Francesa", justifica o actor. Ela é locutora de rádio, onde faz programas culturais, nomeadamente de divulgação de música clássica. Num estúdio radiofónico, numa emissão quase em directo, faz-se público, por interpostas opções culturais o confronto privado de Carlos e Mariana. "Um dia ao acordar reparamos que o amor já não existe", diz Carlos.

Ninguém Duas Vezes é um filme de geração que retrata uma galeria de personagens próximos do cineasta, olhados com a cumplicidade de Os Meus Amigos de António da Cunha Telles ou Oxalá de António-Pedro Vasconcelos, com um contraponto idêntico no estrangeirado/exilado/retornado. "Os rios passam para morrer". E os homens? Ninguém Duas Vezes não é um filme sobre o luto, em sentido freudiano. É talvez um filme sobre a utopia que resiste ao envelhecimento, à morte. Num mundo que morre, a própria vida parece utopia que fica irremediavelmente "a meio caminho". Como o pescador (José Afonso) que relata a morte (suicídio) de Hannah no mar, reflecte a sua desesperada ligação à vida quando lhe fizera a respiração boca-aboca.

O pardoxo de Ninguém Duas Vezes tem a ver com a consciência dos diferentes registos de uma mesma realidade. Ou seja com a produção de sentido que é uma das tarefas evidentes das artes. Daí o sentimento de desrealização de Bernd, ou as dicções nos ensaios teatrais, ou, principalmente, a citação bíblica da transfiguração de Cristo que Mariana a Carlos à saída de uma igreja. Abundam no filme as referências católicas, como a citação da epístola sobre a caridade de S. Paulo, também referida a um tempo pleno, e no seguimento de uma referência a um filme de Rossellini e a Ingrid Bergman num entrecruzamento de culturas que é também central a Ninguém Duas Vezes. Mas é talvez a citação da transfiguração de Cristo que pode de alguma forma constituir uma chave do filme.

Primeiramente porque a própria descrição evangélica é em certo sentido cinematográfica: o rosto como o Sol, as vestes como a luz, a nuvem luminosa. Depois porque no monte a transfiguração é como uma revelação de uma realidade íntima das coisas, uma utopia a comprovar, que aliás pode ser sobreponível ao amor nas relações humanas ou à revolução no contexto social. E ainda porque esta experiência humana é da área de sonho, da loucura, da mística, e de um modo eventualmente menos visual é experimentada em momentos pontuais de plenitude da vivência humana. "É bom estarmos aqui" traduz a vontade de permanência que o próprio movimento de vida não permite.

Ninguém Duas Vezes não é um filme de luto, de elaboração das perdas, mas é uma afirmação da utopia, de algo que nunca se possuíu e que se escapa, que não passou vez alguma mas é ainda a energia de um caminho a prosseguir.

Um outro pólo paradoxal de Ninguém Duas Vezes situa-se entre a vida e o sentimento da vida. Como em grande parte do cinema português actual Ninguém Duas Vezes recorre a um registo metacomunicacional, de certa forma exterior ao acontecer, um pouco como a distância marcada pelo plano do Terreiro do Paço visto do meio do Tejo em Passagem ou A Meio Caminho. Essa situação de alguma forma é invertida na cena da entrevista radiofónica e daí aliás se reflecte sobre a nostalgia do actor, como Carlos que quer ser simplesmente actor que um outro encenador dirija, ou a nostalgia da ficção, que Mário (José Mário Branco) verifica faltar em grande parte da pintura (e da cultura) portuguesa.

Talvez este seja um dilema eminentemente português e actual. 

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