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Foto do escritorAntónio Roma Torres

No País De Alice - Rui Simões (2021)

ALICE E OS SEUS AMIGOS OU ESSE OLHAR QUE ERA SÓ MEU

António Roma Torres

 

Parece tão evidente determinar sobre o que este filme é, que o papel da crítica pode ser tentar ver, para além do aparente, o que na realidade nele está. No País de Alice de Rui Simões é um filme sobre o país, como uma viagem a Portugal (título de Saramago, autor que o cineasta já visitara numa abordagem via O Bando de Ensaio sobre a Cegueira, em Se Podes Olhar Vê, Se Podes Ver Repara e Ensaio sobre o Teatro), país das maravilhas que o não são, ou subtilmente até são e não são, e sobre a Alice, uma criança tornada ficção que ela própria por vezes escreve, mas é uma criança de verdade como se diz quando queremos separar a realidade e a ficção que habitualmente vêm juntas. Alice é a filha mais nova do realizador, e da produtora Jacinta Barros, mas podendo imaginar-se avô e neta, dada a diferença de idades de um septuagenário e uma pré-adolescente, e por aí também o que um país é, como uma cadeia que simultaneamente prende e liberta a sucessão de gerações passadas, presentes e futuras. Ou seja, quase sem se dar conta, o homem e o tempo, a sua mais física experiência que é a idade, e obviamente o crescimento e o envelhecimento.

Para ser isso, que se antecipa como uma longa conversa, No País de Alice torna-se um filme apressado, como se o tal tempo lhe esteja sistematicamente a fugir e o cinema não deva cair na sua tentação primordial de fixação ou registo, herdado da fotografia, e possa como o caminhante ou peregrino continuar sempre em viagem num simulacro interminável da eternidade, que é (também, por outro lado) a própria filmografia extensa de Rui Simões. No fundo tocata e fuga, para usar palavras do mundo musical, que é tão importante no filme, em pista sonora, como as estradas (e os túneis) e os rios e os mares que a imagem vai associando como um discurso sem palavras, interrompendo sem cerimónia o fio lógico das palavras, sejam testemunhos, depoimentos ou ensinamentos, pecha afinal de muito documentarismo cinematográfico em primeiro grau, em tempos activista e agora por vezes simplesmente mais contemplativo, e com menos impulso para acção. O que nunca foi, a bem dizer, o cinema de Rui Simões.

O filme procura assim, com muita criatividade, um efeito encantatório onde a música tem um papel fundamental, seja na aprendizagem de flauta (que é mágica como bem souberam Mozart, Bergman e o Coppola, pai com a filha Sofia co-argumentista, do episódio Vida Sem Zoe de Histórias de Nova Iorque), e da música clássica, que Alice, quando já não caminha, ou relata, ou pergunta, ou responde, simplesmente toca, particularmente quando a pandemia suspende abruptamente a viagem  (precisamente numa primeira performance numa estação-apeadeiro de comboio, de onde se parte, aonde se chega ou até simplesmente se espera e se descansa) ou de uma selecção do reportório dos Dead Combo, até como que invertendo o título de um dos temas, procurando esse olhar que era só meu, e que é a essência mais viva do cinema, do olhar do autor ao do espectador, numa simetria muito interessante que se desvenda na exposição do foto-repórter Álvaro Rosendo, que explica a selecção de fotografias que Sérgio Godinho faz de imagens suas, a partir do que o espelho mostra e que é simétrico do retrato feito em fotografia (ou no cinema), sendo que o espelho também é, como se sabe, uma porta de entrada da outra Alice.

Se a flauta encanta, também sabem as crianças que há histórias de encantar e que o erro é um factor de crescimento que procura a prova para descobrir desencantos em que se abrem novos encant(ad)os.

E de onde vêm as histórias e a sua magia? Uma preciosa hipótese, de abertura do próprio filme, é de certa maneira, a Lagoa das Sete Cidades, na ilha de São Miguel (Açores) em que na realidade não parece haver cidade alguma. Zeca Medeiros conta à pequena Alice a lenda: rei Branco-Pardo e rainha Rosa-Pardo, já velhos, a quem um sonho visionário concede uma filha com a condição de só a poderem ver quando ela tiver vinte anos; o rei é obrigado a construir um castelo onde a princesa é guardada; mas receando não viver o tempo necessário à longa espera, um dia (era uma vez) entra o rei arrombando os portões em Sete Cidades fortificada, logo tremendo a terra e as muralhas, aí nascendo um vulcão, e do vulcão a cratera, e com a água as lagoas, a verde escondendo os sapatinhos verdes da princesa que lhe dão a cor e a azul, o chapéu dessa cor da princesa. Logo depois em conversa com Vítor Hugo Forjaz, vulcanólogo, Alice tenta perceber melhor a história das lagoas ("qual é a parte que tem de real?"), sendo aparentemente mais decepcionante a ciência dos vulcões ("as duas lagoas são reais... dentro da História são reais...quase da mesma idade... com uma diferença da ordem das centenas de anos...príncipes são histórias da carochinha, toda a natureza tem histórias, a lagoa das Sete Cidades também"), no entanto a despertar não menor paixão no cientista uma vez jovem.

O real é ficcionado para o podermos entender ou só acreditamos na ficção pela realidade que contém dentro? eis a pergunta misteriosa que algum cinema coloca e que permite que pessoas e personagens possam confundir-se, como entre nós tem acontecido no que chamei o dedo médio da mão com que Pierre Kast descreveu o novo cinema português dos anos sessenta, inicialmente corporizado em Cunha Telles (Continuar a Viver, mais paradigmático o título que o próprio filme, mas melhor Meus Amigos, antes, e Vidas, depois) e continuado, carregando mais na ficção, em José Álvaro Morais, João Canijo e João Pedro Rodrigues, num campo intermédio, em Joaquim Pinto, e, mais alinhado ao documental, em Rui Simões e Jorge Pelicano, ou mesmo José Filipe Costa.

O que liga estes autores e filmes é de uma forma geral a interpenetração entre os personagens e a ficção que eles podem incorporar, jogando ora num, ora no outro registo, arriscando por vezes colocá-los em crise, ou protegendo-os pelas próprias regras, apesar de tudo frágeis, da representação. Ao contrário de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Rita Azevedo Gomes, Pedro Costa, ou Catarina Vasconcelos que tomam os personagens nos textos/rastos que deixaram.  

A produção de documentários em longa-metragem tem tido entre nós um grande incremento e inclusivamente no acesso à exibição em sala. Contudo nem sempre é acompanhada da reflexão estética que mereceria, não ultrapassando o grau zero do documental. Isso faz com que haja com muita frequência uma grande dependência do testemunho oral ou da narração ou um princípio forçadamente contemplativo, aparentemente de simples registo que conta valer por si.

O cinema de Rui Simões pelo contrário sempre estabelece um princípio de interacção em que a câmara intervém como presença activa desde logo na rodagem e, por outro lado, se organiza por princípios de cinema. Cada plano é imprescindível. Cada enquadramento singular como que procura o que o segue, nem sempre num raccord temporal, mas como uma corrente sem princípio nem fim, e nem sequer meio. Os depoimentos são apanhados em andamento. Principalmente começaram talvez antes, quando não permanecem também depois, num timing que privilegia a atenção a quem está em campo, não tanto simplesmente ao que é dito, mas principalmente a quem o diz. Também não visita apenas amigos, mas gente desconhecida, ou seja, literalmente encontrada, mas como o filme mostra com nome, assim os trabalhadores rurais, António Cunha, "gosto disto por isso aqui estou...segui os traços da família", ou Beatriz Jorge, "eu acho que ninguém gosta de se ver mais velha". É um filme também de gostos e desgostos.

Aos 78 anos Rui Simões revive em hipotéticas despedidas uma arte do inacabamento. Rodou agora uma longa de ficção como nunca fizera antes e chamou-a de Primeira Obra. Como, precedendo Bom Povo Português, rodara em 1976 São Pedro da Cova, uma visita também, às minas já fechadas e aos movimentos cívicos e culturais que lhe sobreviveram, e onde voltou a fazer, em 2017 Do Carvão aos Resíduos.

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