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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Non Ou A Vã Glória De Mandar - Manoel De Oliveira (1990)

VERIFICADO O ÓBITO

 

Non ou a Vã Glória de Mandar, Manoel de Oliveira, Portugal, 1990

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 11 

 

«to be old is a glorious thing when one hos not unlearned what it means to begin», Martin Buber, in Eclipse of God

«74/4/25 - verificado o óbito às 10 horas» (da última imagem de NON OU VÃ GLÓRIA DE MANDAR). Se, como escreve o Padre António Vieira lido «do princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre é non», porque não aplicar isso mesmo ao filme de Manoel de Oliveira? Aliás a ideia de circularidade, se já frequentemente surge na obra anterior de Oliveira, ela é uma das estruturas organizadoras de NON.

Do princípio para o fim é um amplíssimo «travelling» circular em torno de uma árvore imponente.

Do fim para o princípio é o 25 de Abril coincidente com a morte do alferes Cabrita (Luís Miguel Cintra), metaforicamente morte do regime, de um Portugal em batalhas perdido, mas também no plano narrativo, morte do personagem-narrador, daquele que conta, tornando o momento seguinte qualquer coisa virtual em branco.

Aliás do 25 de Abril, propriamente dito, Manoel de Oliveira não enuncia um símbolo, nâo retém uma imagem, deixa-o apenas como uma página em branco (ou em negro que é o branco cinematográfico), uma interrogação suspensa como há 15 anos, um princípio e não um fim a partir do qual todo o filme parece ser enunciado.

Nas linhas secas do diário do processo hospitalar «verificado o óbito» é apenas uma constatação clínica e é na neutralidade desse olhar que Manoel de Oliveira vai de alguma forma enunciar a controversa leitura da História de Portugal através das batalhas perdidas mas não necessariamente menos fecundas. A cada morte há um acréscimo de identidade que misteriosamente parece surgir, num «non» que os deuses oporiam ao desejo de domínio dos portugueses, e é essa verdade que não é uma explicação que está ainda nos lábios do alferes em agonia.

Mas há um outro olhar envolto em ligaduras que fixa este momento de agonia e dá ao filme uma comunicação comovente, rara no cinema austero de Oliveira. 

Se em filmes anteriores Manoel de Oliveira identificou mortes e ressurreições, em O ACTO DA PRIMAVERA e O PASSADO E O PRESENTE, ou filmou directamente a morte no coração necrópsico de FRANCISCA ou no corpo inerte do Visconde de Aveleda em OS CANIBAIS (em que a dança final é ainda uma ressurreição embora na convenção teatral), desta vez Manoel de Oliveira filma directamente a agonia (e o grito lancinante do negro atingido em combate é uma outra imagem no mesmo sentido). E paradoxalmente se mesmo a fidelidade aos  textos literários como rastos de uma vida eram sinal de morte, em AMOR DE PERDIÇÃO por exemplo, dó a impressão de que agora Manoel de Oliveira, com todo o aspecto de transgressão do olhar fixo que espreita por trás das ligaduras, sinal solidário do sofrimento e da ameaça de morte, mas de certa maneira também a barreira corporal, se aproxima do ponto de encontro decisivo que é a agonia, como se ao contrário a morte se escapasse para a vida. Como se o óbito fosse verdadeiramente inverificável e apenas se sucedessem momentos numa espécie de círculos concêntricos que o próprio filme parece privilegiar na sua organização narrativa.

Uma das coisas que chama a atenção neste filme, e particularmente nas cenas de África mesmo se é evidente um certo didactismo nos diálogos, é a representação naturalista, menos distanciada, mais próxima do quotidiano, que regressa talvez a ANIKI-BOBÓ (repare-se em sequências emotivas como as da cantiga «soldado que vais para a guerra» e numa certa semelhança entre os rapazes na guerra e as namoradas que ficaram e os conflitos dos miúdos da Ribeira). Dá ideia que Oliveira que sempre se interessou pela musicalidade das palavras, de O ACTO DA PRIMAVERA a O MEU CASO e OS CANIBAIS, e foi aliás mal compreendido pelas suas opções quanto à representação e dicção dos actores, quase se limilou aqui a levar ao título esse estranhíssimo «non» latino do Padre António Vieira, como a lenga-lenga ANIKI-BOBÓ, no seu primeiro filme de ficção (aqui uma vez mais uma circularidade que não se fechará sobre si e sempre se projecta numa outra abertura).

Há duas razões talvez para esta opção estética de Manoel de Oliveira, ou pelo menos duas circunstâncias que a facilitaram. Em primeiro lugar o argumento de NON é pela primeira vez original de Manoel de Oliveira, ou seja, apesar de inspirado em textos históricos e com algumas citações extensas não se baseia em qualquer prévio texto literário ou teatral - embora seja conhecido que Oliveira escreveu alguns argumentos originais que nunca filmou, com realce para «Angélica», publicado pela Cinemateca Portuguesa com outros textos de Oliveira. Repare-se, aliás, que a narração «off» acaba por não assentar no efeito de texto e remete para o agido, o comportamento, como é muito visível na eficaz encenação da estratégia militar suicida da batalha de Alcácer-Quibir. Por outro lado a música do espanhol Masso, ao que parece imposto pelas condiçães de co-produção internacional, é, desde a cena inicial do «travelling» sobre a árvore, mais psicologista e emotiva, diferente sem dúvida do clima fantástico de desrealização que a música de João Paes comunicava a anteriores filmes de Oliveira.

Não deixa de ser curioso que Manoel de Oliveira que em 1975 filmava BENILDE OU A VIRGEM MÃE e prosseguiu a sua carreiro duma forma quase a-histórica, pelo menos na aparência, pouco reflectindo dos entusiasmos e recuos da Revolução, venha a ser o primeiro cineasta a abordar duma forma central a guerra colonial, depois de, numa menor escala, UM ADEUS PORTUGUÊS de João Botelho ou os pouco divulgados filmes televisivos de Luís Filipe Costa, Jaime Campos, etc. E significativamente fâ-lo num interesse pela reavaliação da História portuguesa, convergente com O BOBO de José Álvaro Morais, 0 DESEJADO de Paulo Rocha, e O PROCESSO DO REI de José Mário Grilo, num discurso que se pretende pós-nacionalista em ruptura com o Estado Novo cinematográfico de um CAMÕES de Leitão de Barros, por exemplo. 

A guerra perdida de Salazar e Caetano é posta em paralelo pelo alferes narrador com Viriato opondo-se ingloriamente ao resto do mundo, então romano, ou com D. Sebastião desafiando a proteção divina numa última cruzada infantil e ingénua contra os mouros. 0 contraponto numa lógica de polarizações opostas que Manoel de Oliveira continua a utilizar quando aborda os temas universais - a bomba atómica e Cristo em O ACTO DA PRIMAVERA ou Guernica e Gioconda em 0 MEU CASO - é a sequência camoniana da Ilha dos Amores, com a dádiva dos Descobrimentos e a Máquina do Mundo que pode ser a revolução epistemológica ou muito prosaica e simplesmente o sexo numa afirmação vital que contraria a da morte, com os magníficos rituais fúnebres do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, ou da mutilação, com a imagem sacrificial do Decepado. E esse instinto vital que sobrevive ao próprio narrador, num 25 de Abril que é no filme de Oliveira apenas o futuro, um amanhã, que pode ser de repetições de um D. Sebastião no nevoeiro a regressar ao Cais das Colunas e a ferir-se na própria espada, mas é também essa palavra que o alferes não consegue completar no leito do hospital. Entre a imagem onírica e a consciência, é o dilema universal da identidade dos povos que se debate, e das suas potencialidades criadoras na arte, na ciência e no amor ou destruidoras na guerra. 

NON OU VÁ GLÓRIA DE MANDAR mostra a surpreendente capacidade de Oliveira para encontrar novas formas, nunca desaprendendo de começar e lançando esse desafio mesmo à própria ideia de Portugal. Mesmo nos seus pontos cinematograficamente mais débeis, como nas cenas de Viriato ou da batalha de Toro, Oliveira apenas parece hesitar na sua própria organização interna para acabar por atingir quase a perfeição no final, nas cenas de Alcácer-Quibir e da guerra de África até à agonia do alferes.

 

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