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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Non Ou A Vã Glória De Mandar - Manoel De Oliveira (1999)

TERRÍVEL PALAVRA

 

Manoel de Oliveira sempre jogou com a musicalidade das palavras de O Acto da Primavera a O Meu Caso e Os Canibais. Isso suportou muitas vezes um tipo de representação e dicção dos actores que frequentemente foi mal compreendido.  Agora em Non ou a Vã Glória de Mandar parece que essa tendência se limita ao título, um «non» latino tomado do Padre Antonio Vieira como terrível palavra que os deuses oporiam aos desejos de domínio dos portugueses. "Lede-o do princípio para o fim ou do fim para o princípio sempre é non". Cita-se António Vieira e a ideia de circularidade desde o travelling inicial em torno da árvore parece ser um dos organizadores da estrutura do filme. Mas todavia se o titulo do filme acolhe a estranha musicalidade do «Non» desta vez Manoel de Oliveira parece ter escolhido um sistema de representação mais naturalista particularmente nas cenas da guerra de África apesar das dificuldades de um diálogo construído de forma evidentemente didáctica. Ao contrário dos seus filmes recentes digamos de Aniki-bobo em diante desta vez Manoel de Oliveira usa um tom mais próximo dos personagens, intimista e, por vezes, comovente (recorde-se nas cenas dc África a cantiga "soldado que vais para a guerra" e a sequência fina! da morte do protagonista-narrador).

Naturalmente há dois aspectos que têm particular importância no   tratamento   estético de Non e nas emoções que desperta no espectador. Em primeiro lugar o argumento é do próprio Manoel de Oliveira, isto é, não se baseia num preciso texto literário ou teatral como praticamente todos os filmes anteriores - embora seja conhecido que Manoel de Oliveira escreveu muitos argumentos originais que não chegou a filmar alguns dos quais com realce para Angélica foram há anos editados num livro da Cinemateca. Manoel de Oliveira, claro, inspirou-se em alguns textos históricos o filme tem algumas citações extensas, mas o trabalho de argumento de Non e na realidade original. Num plano menos importante está o uso da música. Aparentemente imposto pelas condições de co-produção o espanhol Alejandro Masso assina um fundo musical mais familiar ao  cinema standard, muito diferente do clima um pouco fantástico da habitual colaboração nesta área de João Paes responsável pela música de quase todo o cinema de Manoel de Oliveira até a ópera Os Canibais. Se Non é na obra de Manoel de Oliveira um filme mais psicologista isso resulta em certa medida da música, desde o início no acompanhamento do deslumbrante travelling sobre a árvore que se liga a sequência imediata do diálogo dos soldados no camião militar em África.

Repare-se por outro lado que Manoel de Oliveira vai privilegiar a acção e os comportamentos em detrimento da palavra apesar da narração off ou por isso mesmo - não é a palavra que se filma como em Amor de Perdição ou nos outros filmes literários, mas ela comenta a acção, quase próximo dos filmes do modelo americano -, por exemplo, na sequência da Batalha de Alcácer-Quibir, em que a estratégia suicida de D Sebastião é dada com todo o pormenor e eficácia, nas movimentações no terreno. A guerra colonial e a Batalha de Alcácer-Quibir são sem dúvida os episódios mais interessantes do filme de Manoel de Oliveira que no entanto se apresenta como uma versão multifacetada, diríamos em círculos concêntricos, da História de Portugal e duma certa compulsão de repetição que explicará as derrotas de Viriato morto traiçoeiramente durante o sono, da batalha de Toro com a heroicidade inglória do Decepado, e posteriormente de Alcácer-Quibir e da guerra de África. A postura do filme face à História de Portugal é provavelmente controversa, inclusivamente na ambiguidade das suas leituras, mas a sua verdadeira interrogação é ado 25 de Abril duma nova página que se abre em branco na vida colectiva de um povo em que necessariamente a História se vai reescrever. A morte do alferes Cabrita (Luís Miguel Cintra) o personagem narrador vai coincidir com o 25 de Abril nessa magnifica economia narrativa da folha do diário do processo clinico onde o capitão-médico escreve a data histórica seguida de "verificado o óbito às 10 horas". Verificado o óbito é a interrogação que nasce sobre o que morreu nessa manhã-madrugada de Abril. Curiosamente em 1975 Manoel de Oliveira seria acusado de fazer um filme cujo projecto vinha de antes do 25 de Abril e que parecia cruzar-se mal com a Revolução como foi Benilde ou a Virgem-Mãe. E se data já de então a primeira ideia de Manoel de Oliveira sobre Non o  que  é facto é que numa certa intemporalidade a sua carreira parece situar-se num tempo a - histórico passando ao lado dos entusiasmos e dos recuos da Revolução Significativamente mesmo tendo em conta Um Adeus Português de João Botelho e alguns filmes televisivos de Luís Filipe Costa, Jaime Campos  etc. Manoel de Oliveira vem a ser o cineasta português a abordar de forma mais central a guerra colonial nestes (muitos) anos que seguiram já o 25 de Abril.

A guerra perdida de Salazar e Caetano é posta em paralelo com Viriato opondo-se ingloriamente ao resto do Mundo, então romano, ou com D Sebastião desafiando a protecção divina numa última cruzada infantilmente ingénua contra os mouros. E não deixa de ser interessante que a História seja objecto de alguns recentes filmes portugueses como O Bobo de José Álvaro Morais, O Desejado de Paulo Rocha, ou O Processo do Rei de João Mário Grilo, numa averiguação da identidade nacional du­rante muito tempo hipotecada ao discurso nacionalista do Estado Novo, e que o exemplo cinematográfico mais significativo terá sido Camões de Leitão de Barros.

Manoel de Oliveira enfrenta a História com coragem, mas por detrás dos seus objectivos aparentes há a procura duma verdade, que não é uma explicação como sugere o alferes Cabrita e que se funda em polarizações fundamentais do seu cinema como o Cristo e a bomba atómica de O Acto da Primavera ou Gioconda e Guernica de O Meu Caso, ou as mortes e ressurreições de O Passado e o Presente ou Os Canibais. Significativamente as últimas cenas do filme são um olhar sobre a agonia, o olho envolto em ligaduras que  fixa a morte do personagem, como se mortes e derrotas, frustrações e incapacidades, sofrimentos e amputações fossem finalmente fecundas ao nível da camoniana Ilha dos Amores, ou da "dadiva dos Descobrimentos", ou da Máquina do Mundo que é a resolução  epistemológica ou talvez apenas o sexo, num instinto vital que sobrevive ao próprio narrador nessa imagem do futuro que é no filme a Revolução de  Abril. E agora, Portugal? -  parece ser a pergunta que Manoel de Oliveira ainda persiste em formular quinze anos depois como se o verdadeiro problema da identidade do indivíduo ou de um povo possa ser decifrado a cada morte, como se filmar a morte seja encontrar a vida. "Verificado o óbito" (terrível palavra também) tudo fica em aberto, em branco. O cinema de Oliveira parece caminhar no sentido contrário ao das leis da vida e do envelhecimento, da cena necrópsica do coração em Francisca, ou do corpo inerte do Visconde de Aveleda em Os Canibais, a fixação da agonia em Non ou a Vã Glória de Mandar como se paradoxalmente a morte se escapasse para a vida. Na sua surpreendente capacidade de encontrar novas formas a obra de Manoel de Oliveira revela-se numa impressionante coerência.

 

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 20/10/1990

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