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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Nuvem - Ana Luísa Guimarães (1991)

PÚBLICO E PRIVADO

 

Nuvem, Ana Luísa Guimarães, Portugal (1991)

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 20

 

Talvez não seja por acaso que esta primeira longa-metragem de Ana Luísa Guimarães se centra num mundo predominantemente masculino, viril, mas simultaneamente numa idade jovem em que a identidade se sente ainda ameaçada. NUVEM é visivelmente um filme duma mulher num cinema como o português onde há um número significativo de realizadores de cinema já com obra feita. Por isso chama eventualmente a atenção a personagem de Laura (Rosa Castro André) numa imagem de disponibilidade, de acolhimento, capaz de uma confiança ilimitada próxima do inacreditável. Mas essa personagem idealizada parece um artifício de narrativa. O verdadeiro protagonista é Tomás (Afonso de Melo) e é com grande sensibilidade que Ana Luísa Guimarães traça um retrato masculino, sem retórica, guiado fundamentalmente pela acção, onde os ganhos de informação para o espectador se associam sempre a uma economia de palavras. É que essa opção formal, talvez imediatamente entendida na aproximação ao modelo americano e aos condicionamentos do gosto do público, é o modo mais justo de perceber uma personagem cuja trajectória vai dissociando de uma forma subtil o íntimo e o público ou social. Nesse sentido tipicamente masculina.

A história de Tomás é a da ausência de pai e da identificação com ele na herança de substituição que assume no grupo. Mas também a dificuldade de intimidade aprendida numa infância passada em instituição.

Daí que Tomás substitua a segurança das relações pessoais pelas regras de que espera protecção. «Neste mundo há regras» dirá ele ao afirmar a sua liderança, numa atitude de protecção do grupo, que ele em todo o caso não saberá defender. E será ainda numa lei imaginada que impediria a esposa de testemunhar contra o marido que Tomás irá justificar o casamento. A intimidade que anula as regras, que é a vertigem abismal do comportamento de Laura, parece assustá-lo.

Tomás é uma personagem do exterior. Ele tem que vir para a rua para enfrentar o grupo de Xavier (Rui Brás), precisamente na noite passada na pensão após o casamento. «Não podia deixar que me batessem na tua frente» é a justificação de um determinado entendimento da identidade masculina, mas também de um certo efeito de pose, teatral, narcisista, que muitas vezes se considera feminino.

Aliás há uma ambivalência notória no retrato da personagem que se envolve com Laura numa tentativa de eliminar um testemunho indesejável e sem se dar conta ou sem o saber expressar vai-se abrindo a uma realidade afectiva, desconhecida do seu mundo homossocial.

A cena de gravação da cassette no dia do casamento na loja de electrodomésticos condensa bem o dilema da personagem. Onde se espera uma declaração de amor, o efeito da câmara e as palavras criam um movimento de oposição à invasão («larga-me cabra»), e paradoxalmente num momento em que o personagem está protegido pelo vidro e pela insonorização. O excelente final com Rosa abraçada à cassette, que afinal talvez não chegue a ver, após a morte de Tomás, diz bastante do silêncio da intimidade e dos sentidos que deixa em aberto. Por isso a intimidade pode constituir uma ameaça à identidade.

NUVEM aborda as personagens de uma forma bastante corporal, não provavelmente no sentido erótico, mas na própria coreografia das brigas com ressonâncias subliminares de um West Side Story. Por isso há um certo pudor quanto à violência e os crimes surgem aliás mais como acidentes de movimentos pulsionais do que como actos intencionais. Laura, Tomás e os companheiros parecem não experimentar a decepção, a desilusão, o cinismo calculista, ao contrário, por exemplo, de Teresa (São José Lapa) ou Raúl (Guilherme Filipe) onde é evidente a ferida narcísica e o sentimento de abandono - são personagens em ruptura, magoados no seu sentimento de pertença afectivo ou gregário.

NUVEM pode entender-se como um ponto de maturidade duma geração a que pertencem Vítor Gonçalves (UMA RAPARIGA NO VERÃO), João Canijo (TRÊS MENOS EU, FILHA DA MÃE), Pedro Costa (O SANGUE), Joaquim Pinto (UMA PEDRA NO BOLSO, ONDE BATE O SOL), Teresa Villaverde (A IDADE MAIOR). Já não se pode falar de «verdes anos» mas antes de «mudar de vida», aliás na linha da própria temática do filme. E se no filme de Ana Luísa Guimarães ainda sintomaticamente se sente a marca de idade na caracterização das personagens, é importante salientar que se abandonou o carácter incipiente até há pouco visível no cinema desta nova geração.

 

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