top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Não Sou Nada - Edgar Pêra

UMA SÓ OFÉLIA E MUITOS PESSOAS

 António Roma Torres

 

Não Sou Nada, título tirado da abertura de A Tabacaria, poema de Álvaro de Campos, é um exercício de cinema que desafia o espectador, como se espera de Edgar Pêra, um cineasta português extremamente prolífico - em entrevista com Manuel Halpern no JL (nº 138418/31 Outubro 2023) diz que "a partir dos cem deixou de contar (os filmes)" - mas no entanto tem apenas seis longas de ficção, A Janela (Marialva Myx), Rio Turvo, O Barão e Caminhos Magnetykus (os três adaptados de Branquinho da Fonseca), ainda Virados do Avesso (de construção narrativa mais convencional) e Delírio em Las Vedras, e uma curta, CineSapiens, sketch de 3x3D, com as outras partes assinadas por Jean-Luc Godard e Peter Greenaway, num conjunto para a Guimarães, Capital Europeia da Cultura 2012, numa carreira que leva já mais de trinta anos.

Na citada entrevista do JL, Edgar Pêra assume o filme como um projecto mental - "eu quis entrar na cabeça de (Fernando) Pessoa, e deixar que ele entrasse na minha".

O filme tenta pois ser, a condizer com a própria obra de Pessoa, um jogo mental, e naturalmente beneficia também da participação de Luísa Costa Gomes no argumento, já que a escritora, dramaturga e antes professora de filosofia no ensino secundário, e aliás já com trabalho de argumento no anterior O Barão de Edgar Pêra, que esteve envolvida num projecto de uma série de episódios para RTP, não concretizado mas que fora anunciado pela própria em 2008, por ocasião da comemoração dos 120 anos do nascimento do poeta, no I Congresso Internacional Fernando Pessoa, na Casa Fernando Pessoa (LUSA, 28/11/2008).

Luísa Costa Gomes pretendia então adaptar as 13 novelas policiárias de Quaresma, Decifrador, algumas apenas esboçadas, e coligidas por Ana Maria Freitas, em edição Assírio & Alvim, também em 2008, que publica em 2013 um excelente O Enigma em Pessoa (Sigila nº 31, p. 37-46), título aliás de dupla leitura, e que terá estado na própria apresentação, tão ao gosto de Edgar Pêra, de Não Sou Nada como Cine-Enigma.

Aliás a importância do gosto de Pessoa pelo "policiário" como "romance de enigma", "forma superior de divertimento intelectual", radica no centro de muito da sua obra poética, nas palavras de Ana Maria Freitas, "o género policial fascinava-o, como fascinou outros modernistas, por ser um género construído sobre a noção de que, por detrás de uma realidade, outra existe, de que a superfície esconde mais do que revela, de que há sempre um mais além, de que por detrás de um rosto, outro rosto se esconde. Estes conceitos surgem, tratados de outra forma, em muitas poesias de Pessoa".

Mas na génese deste brilhante Não Sou Nada estará também, para quem conheça o percurso de Edgar Pêra e não se iluda apenas com o carácter trepidante, estroboscópico e tridimensional, do seu cinema, também fragmentário e prolífico como a obra literária de Pessoa, de certa maneira característico do homem do século XX que, roubando-lhe as duas décadas inicial e final, nascia metaforicamente no dealbar da I Guerra Mundial (1914) e morreria precocemente na queda do Muro de Berlim (1989), uma outra personalidade multifacetada dos anos 20-30, que foi Reinaldo Ferreira, o Repórter X (1986) de José Nascimento, primeiro filme em que Pêra colaborou na escrita do argumento e diálogos, significativamente com José Álvaro Morais e Manuel João Gomes.

Essa filiação de certa maneira permitirá ver o presente filme a uma luz que não contradiz O Espectador Espantado que tem seduzido a investigação de Edgar Pêra, académica - relatório com esse título para obtenção do grau de Doutor pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais na Universidade do Algarve em 2017 - e cinematográfica - filme documentário complementar com primeira exibição pública no Festival de Cinema de Roterdão em 2016 que três anos depois o homenageia com uma retrospectiva que o apresenta de forma grandiloquente como "o genial polímata português, filósofo de imagens sonoras, performer, rebelde nato, eterno modernista, génio da vanguarda, extraordinário satírico político, numa homenagem tardia a uma das vozes mais imprevisíveis e únicas do cinema mundial", ao mesmo tempo que exibe Caminhos Magnétykus, uma mais recente adaptação de Branquinho da Fonseca - mas mostra um autor surpreendentemente disciplinado num dispositivo afinado de relojoaria que permite conjugar num espaço fechado uma inimaginável porção de heterónimos, mais ou menos sósias, do poeta genial ao som quase ininterrupto dos seus textos mais e menos conhecidos, orquestrados num enigma em que o próprio Fernando Pessoa (Miguel Borges) ameaçado por um maléfico Álvaro de Campos (Albano Jerónimo) decide chamar Abílio Quaresma (Paulo Calatré) a resolver o que se torna o caso do Quarto Fechado de um suposto suicida estranhamente degolado que ele próprio escrevera (adaptado em 2022 numa BD de Mário André, linguagem espaço que Não Sou Nada de certo modo recria noutro registo e cor que aponta ao futurismo expressionista de Fritz Lang).

Este Pessoa que aparentemente salta fora do intelectual filósofo que abarca toda a sua poesia e a prosa do desassossego, com os heterónimos que lhe parecem escapar numa luta fratricida nesta "fábrica" editorial que Edgar Pêra compôs na tradição de um cinema de "montagem de atrações" do período mudo de Eisenstein e Fritz Lang que o sonoro conseguiu aparentemente domesticar e estandardizar, com os protestos mal entendidos de Hitchcock, encaixa mais prosaicamente na tradição da literatura portuguesa de crime e mistério que Carlos Macedo estuda de forma exaustiva em dois artigos no maisribatejo.pt (26/5 e 1/6, 2022), dando aliás o devido destaque ao Abílio Quaresma decifrador de Pessoa e ao Repórter X de Reynaldo Ferreira.

Por outro lado, todo este enredo pode ser a loucura de outros heterónimos, nomeadamente António Mora (António Durães), médico da cultura, alienista ou doido varrido, e o seu heterónimo psiquiatra, Faustino Antunes (Marco Paiva) no ambiente sanatorial da Casa de Saúde de Cascais em que a inversão de papéis parece paradoxalmente uma regra, ou os mais canónicos Ricardo Reis (Vítor Correia) ou Alberto Caeiro (Miguel Nunes) também ameaçados nesse mundo ora distópico ora sedutor.

Mas o achado principal desta fantasia muito bem urdida é a surpreendente Ofélia (Victória Guerra num excelente desempenho), espécie de mistura da Lauren Bacall que irrompe em Ter ou Não Ter de Hawks ao encontro de Bogart e da europeia Catherine Deneuve que resiste à idade que acaba por chegar, ou ainda da voz de Kathleen Turner no desenho de Jessica Rabbit em Quem Tramou Roger Rabbit?, transmutada inclusivamente como enfermeira, com uma desenvoltura que a personagem real das cartas de amor que nunca foram ridículas alguma vez ousou ter.

Estes Fernandos Pessoa, todos e mais algum, como o que sobreviveu para ganhar o Nobel no ano falhado do nazifascismo já entrevisto no filme, numa Segunda Vida de Fernando Pessoa, que João Céu e Silva lhe escreveu no pandémico ano de 2020 em folhetim à maneira de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão no Diário de Notícias e depois publicado em livro via um Vicente Guedes a quem o Pessoa que tenta controlar a casa editorial não chega a atribuir o Livro do Desassossego, transborda por todo o filme com uma espécie de seriedade cómica, caricatura como quase são as pinturas, desenhos e estudos múltiplos de Costa Pinheiro e não se candidata a ficar simplesmente bem parecido num retrato erudito, antes abre-se à imaginação supostamente louca de Edgar Pêra, neste caso talvez equilibrada ou contida na eficácia de Rodrigo Areias, seu produtor habitual mas aqui a filmar no seu ambiente vimaranense e com mais meios, com a legitimidade "(d)este Pessoa que ele também é, e todos nós, afinal, agarrados ao último mito possível da nossa cultura", como José-Augusto França se tinha referido a Costa Pinheiro (Colóquio/Artes, set. 1981, p. 69).

Note-se que o filme de Edgar Pêra foi rodado em pleno confinamento, "em bolha" numa fábrica desactivada em Vila das Aves, e até por essa génese estabelece um paralelo curioso com Um Filme em Forma de Assim de João Botelho, sobre a poesia de Alexandre O'Neil.

Botelho, aliás, fizera também um Pessoa (e Mário Sá-Carneiro) em Conversa Acabada nos anos oitenta (como Repórter X) e repetira Pessoa (e Saramago) imediatamente antes em O Ano da Morte de Ricardo Reis, sem excluir um Filme do Desassossego (2010).

Mas enquanto Botelho procura filmar o texto, à moda de Manoel de Oliveira a quem dedicou o significativo O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu, Edgar Pêra constrói uma ficção, aliás tomando como centro o mais ficcionista Pessoa das novelas policiárias do Quaresma, Decifrador, mas isso não o impede de, num filme de excelente trabalho de dialogista, ouvir Pessoa quase ininterruptamente, citado num caudal literário, mas não recitativo, que não entorpece o ritmo do filme antes o organiza numa toada inclusivamente musical que quadra bem com a sua construção gráfica.

Não Sou Nada, ou no título internacional proposto, aliás bem sugestivo, The Nothingness Club, talvez fique na história cinematográfica lusa como um contributo ao estudo de um confinamento criador num paradigma bem pessoano e português e que não foi só pandémico, afinal mais uma carta (mágica?) num baralho que de certa forma assinala os 50 anos da geração Gulbenkian do cinema português pré-25 de Abril, e inclui António-Pedro Vasconcelos (Km 224), Rui Simões (No País de Alice e Primeira Obra), João Botelho (Um Filme em Forma de Assim), Rita Azevedo Gomes (Trio em Mi Bemol), João Canijo (Mal Viver), José Nascimento (Casa Flutuante), João Pedro Rodrigues (Fogo-Fátuo), Miguel Gomes (Diários de Otsoga) e Cláudia Varejão (Lobo e Cão). Um cinema que "à parte isso, tem em si todos os sonhos do mundo".

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Primeira Obra - Rui Simões

ELOGIO DA SINGULARIDADE António Roma Torres Primeira obra (exibido no IndieLisboa 2023) é um filme a vários títulos paradoxal. Na...

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page