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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Cerco, O Recado E Perdido Por Cem

UMA TRILOGIA LISBOETA

 

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Março/1974, pgs. 55-61

 

Consciente de que é português não apenas o filme sonorizado nesse idioma, mas o filme que fala de nós (daí o engano das co-produções de António Vilar), o cineasta português procurava retratar os nossos traços característicos. O mais popularucho do nosso cinema clássico usava o fado, ex-libris nacional, mistura de populismo e folclore. Os novos cineastas, influenciados pelos movimentos da literatura portuguesa neo-realista, e pelo cinema italiano do após-guerra que marcou quase todas as tentativas de renovação, deixaram-se facilmente seduzir por um cinema de retratos rurais, pretensamente ao encontro do povo.

Nascido na cidade e consumido pelo espectador urbano, esse cinema-revelação respondia à exigência de conhecer uma realidade portuguesa que ultrapassava os limites de influência do espectáculo cinematográfico - espectáculo de élite entre nós, mercê dum reduzido número de salas, da proibição da dobragem e da própria pobreza das regiões não citadinas; mercê, por outro lado, da escassez de outros espectáculos (música, teatro) que feitos entre nós pudessem preencher essa função elitista que (aliás indevidamente) lhes pertence noutras sociedades. O certo é que surgiu um cinema paternalista e em todo o caso pouco identificado com os seus consumidores, que não soube sobreviver à concorrência do cinema estrangeiro importado, mesmo o de pretensões artísticas e sociais acima da comercialidade corrente e que progressivamente obtinha entre nós um espaço (e um estatuto discutível), à semelhança dos outros países. Isso explica o fracasso económico da primeira fase do novo cinema português, já que tradicionalmente a cobertura das despesas de produção se terá de fazer na exploração lisboeta.

Foi assim que um filme lisboeta, nascido da experiência próxima do seu realizador, veio a romper com este círculo vicioso. Trata-se de O Cerco, que pretende ser a crónica do nosso desenvolvimento, mas principalmente a crónica da nossa transformação; filme onde a juventude alcança o papel principal (repare-se na diferença em face de Domingo à Tarde, filme com algumas características semelhantes como abordagem da cidade); filme que deve também bastante à influência francesa da «nouvelle-vague» e da sua economia narrativa, e até da sua problemática individualista.

 

CRÓNICA ANEDÓTICA

 

O retrato de Lisboa nos anos que vão do início do sonoro a 1950, bem merecia o título da obra de Leitão de Barros, Lisboa, Crónica Anedótica. Da tradição de Gervásio Lobato e de André Brun, o cinema português de Cotinelli Telmo (A Canção de Lisboa), de Leitão de Barros (Maria Papoila), de Lopes Ribeiro (Pai Tirano), de Francisco Ribeiro (O Pátio das Cantigas) e de Artur Duarte (Costa do Castelo e Leão da Estrela) soube retirar o humor satírico, a caricatura de uma pequena burguesia que correspondia a uma realidade lisboeta. Cinema superficial, enganador, desatento de uma problemática mais vasta que invadia Lisboa com a Segunda Grande Guerra, fica sendo também do mais inventivo e vivo cinema comercial que se conseguiu produzir entre nós - e que nada tem a ver, por muito que custe aos seus autores, com o humor de cançoneta e melodramatismo dos filmes de Constantino Esteves e Henrique Campos. Não é absurdo citar esta experiência a propósito de O Cerco e dos filmes que o seguiriam, pois trata-se de um regresso ao retrato de Lisboa, duma Lisboa por certo muito diferente, até duma Lisboa identificada a partir de posições ideológicas muito contrárias, mas que guarda alguns paralelos. Assim é a vida de Lisboa que espreita, com os seus lugares característicos, e também com as suas personagens típicas que se repetem em O Cerco, O Recado e Perdido por Cem, como nas comédias dos anos 40 (ainda que as Avenidas substituam o Castelo e os Armazéns Grandela se troquem pelo Casino do Estoril).

Em resumo, trata-se não apenas da cidade, mas de uma cidade e a comparação não é tão gratuita que não permita, para além dos personagens-tipo que se repetem em caricaturas idênticas (comparar os personagens de O Cerco e O Recado: o intelectual frustrado e isolado, o eficiente «businessman», o marginal terno e desencantado), encontrar no Nuno Martins de Perdido por Cem um prolongamento do retrato tão português que António Silva encarnou em muitos dos filmes dessa época passada.

 

A CIDADE COMO POLÍTICA

 

Há, no entanto, entre ambos os conjuntos de filmes uma larga distância que se não pode ignorar e que introduz uma diferente valoração da função social que na respectiva época assumem.

 

Evidentemente que, ao contrário dos anos 40, os filmes dos anos 70, produzidos sem benesses oficiais, não pretendem iludir todas as questões políticas que se expressam na fisionomia de uma Lisboa de transição, embora nem sempre as transmitam explicitamente. São por isso talvez menos humorísticos, mas apelam fundamentalmente para a participação crítica, sem, contudo, se embrenharem em formalismos de difícil leitura. Simples, apostando na verosimilhança (que lhes condiciona grande parte das opções artísticas e mesmo ideológicas) os filmes de Cunha Telles, Fonseca e Costa e A. P. Vasconcelos não procuram distrair dos problemas quotidianos, deixando o espectador no conforto, embora pela linguagem se aproximem do modelo convencional do cinema americano com que apesar de tudo o cinema de autor europeu e a «nouvelle-vague» não rompem. Do curso do IDHEC. do cineclubismo e da cultura tipo «Cahiers du Cinéma». os seus autores souberam colher um modelo que, se não permite uma lucidez plena perante os problemas abordados e as suas razões, - transportando com frequência uma óptica existencialista mais do que um dado de análise social e política-, não deixa no entanto de os reflectir o que já é de si um valor positivo, especialmente se, como é o caso do cinema português, tais questões transgridem a convenção da restante produção. Aparece assim o mundo da publicidade - os cineastas portugueses conhecem-no bem da época da escassa produção autónoma - que em si reflecte uma estrutura ideológica a aproximar-se da sociedade de consumo, com o dinheiro e os meios de comunicação social a realizarem uma função manipuladora. É o quadro do desenvolvimento português que O Recado traça simbolicamente na opção entre António, o empresário, e Francisco, o clandestino.

 

Mas qualquer dos filmes reflecte as contradições dessa nova cidade aparecer - quer um sentimento geral, «uma raiva a crescer» na expressão de Maldevivre, induzida pelos perseguidores que trajam de gabardina num subtil aproveitamento da convenção dos policiais americanos (O Recado) quer um destino agressivo que destrói o amor e a viagem para a Europa, intencionalmente encarnado por um soldado que regressa de África (Perdido por Cem).

A subtileza destas alusões políticas (subterrâneas dadas circunstâncias) faz-lhes perder significado, mas é importante que elas ganhem expressão cinematográfica, mesmo que reduzidas a um traço da paisagem, se obras posteriores souberem desenvolver essa inovação arrojada.

 

Torna-se porém evidente que esta opção, podendo ser a mais corajosa, é também a mais ambígua. Por exemplo, criticando o uso do corpo feminino (e a destruição da mulher) pelos mecanismos da publicidade, O Cerco recorre ao corpo de Maria Cabral como ponto de atracção e serve-se descaradamente da publicidade que ajuda o financiamento do filme. Criticando uma certa inconsciência oportunista dos produtores de rádio, Perdido por Cem vai servir-se desse veículo de promoção através da canção de Paulo de Carvalho. São esses os pontos que facilitam que este tipo de filmes venha a ser um produto de consumo na sociedade de consumo que pretende caracterizar. Falta-lhes distância crítica; razão talvez porque unanimemente encarnam em alguns dos seus personagens as hesitações interiores da pureza de princípios e das cedências do quotidiano - é Carlos, o marido de Marta, em O Cerco, é Alcino, o escritor bêbado em O Recado, é Albano e de algum modo Artur, o protagonista, em Perdido por Cem.

 

ESTÉTICA DA EFICIÊNCIA

 

Depois de visto O Cerco, fica a dúvida de que se tenha encontrado a via inovadora e revolucionária do novo cinema português. Renunciando à história do enredo bem articulado que o cinema português corrente nunca soubera construir, Cunha Telles diminui a dificuldade e sai-se bem da empresa: um cinema comercial, clássico, que possa ter êxito sem insultar ninguém. Não é cinema de arte ou de ensaio, não faz grandes descobertas, acumula algum saber das regras clássicas estudadas no IDHEC, mas ultrapassa também o «parquemayerismo» medíocre do cinema nacional. Avanços em tal terreno, que possa ser base de inovações posteriores, não se devem menosprezar. E realmente O Cerco abriu espaço para o cinema mais exigente de O Recado e, de algum modo, de Perdido por Cem, que relevam de uma maior convivência cultural com o novo cinema europeu. Considerar O Recado um sub-Antonioni e Perdido por Cem um sub-Godard diz alguma coisa dum cinema português que pouco encontrando na sua experiência histórica se tem que definir em relação a marcos fundamentais do cinema europeu, mas menospreza injustamente o valor de ambas as obras.

Há porém demasiada convenção nos filmes de Fonseca e Costa e A. P. Vasconcelos se virmos que a uma linguagem, que deixa facilmente encontrar o seu modelo, se a uma paisagem lisboeta em quase tudo subsidiária de O Cerco, parecendo engendrar-se aí uma Lisboa convencional, mais do que a revelação que resulta do inédito, do habitualmente escondido - e esse era o valor de O Cerco na escolha dos personagens, particularmente Marta e Vítor Lopes, ausentes do cinema português anterior.

Falando de um mundo que lhes é próximo, recorrendo à experiência interior de carácter autobiográfico, pretendendo retratar os sentimentos subjectivos mas procurando como critério de validade a verosimilhança, (que o barroquismo de um Fellini ou o misterioso de um Bresson desprezariam... mas estes autores pouco devem à influência de Fellini e de Bresson, ao contrário afinal de Manuel de Oliveira, que também se ocupa da cidade em O Passado e o Presente), evidentemente que tudo isso se vai reflectir na concepção desta trilogia lisboeta. E os paralelos são fáceis de encontrar - personagens jovens obedecendo a alguns traços comuns (abundam os modelos e os comportamentos oscilamentre o convencional e o moderno, sem grande profundidade); ausência de contestação estudantil, procurando no entanto definir alguns personagens como intelectuais; pouca importância dada a um conflito de gerações que os filmes escamoteiam retratando apenas determinado estrato etário; ausência quase completa de relações profissionais que lançam os personagens numa independência fictícia; diálogos quotidianos (importando mais pelo ambiente sonoro do que pelo conteúdo, aprendendo bem a lição do cinema novo francês), interpretações naturalistas, música e canções impressionistas, montagem linear (embora exigindo em O Recado uma certa inteligência treinada no cinema moderno), fotografia realista (com alguma tonalidade impressionista em O Cerco).

 

Nestas opções estéticas se joga um empirismo e um subjectivismo que contrastam com a maior distância crítica em relação ao espectador que pretendem alcançar a lentidão de Pedro Só ou o jogo de contra-sinais de O Passado e o Presente ou Uma Abelha na Chuva.

 

Trata-se portanto nesta trilogia lisboeta de um conjunto de filmes em que as boas intenções se arriscam a serem absorvidas pelo êxito que o modelo escolhido facilmente alcança. Será talvez O Recado o filme deste grupo que alcançando positivamente um maior significado nos seus simbolismos (e Maldevivre é um personagem excelente como retrato colectivo), por isso mesmo se defende na sua leitura mais profunda das limitações apontadas.

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