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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Convento - Manoel De Oliveira (1995)

O SONHO E A LINGUAGEM

 

 

O Convento, Manoel de Oliveira, Portugal, 1995

 

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 18-19, Novembro/1995, pgs. 82-84

 

 

A obra de Manoel de Oliveira revela ao mesmo tempo uma extraordinária coerência e um continuado espírito de pesquisa que torna aliciante a cada novo filme descobrir tanto as linhas de continuidade como os sinais de ruptura.

 

O Convento é a esse respeito uma das mais interessantes obras de Manoel de Oliveira. Tudo nele parece simples e imediato e no entanto como em toda a sua filmografia estamos como que perante uma outra dimensão da realidade, cujos sentidos se apresentam quase inesgotáveis.

 

No cinema de Oliveira não se entra por acaso. Essa definição de um território próprio estabelece-se logo na sequência inicial por um portão que se abre, desta vez filmado do interior, ao contrário da sequência inicial semelhante de O Passado e o Presente (um dos anteriores filmes de Oliveira com que O Convento guardará mais pontos de contacto), em que os carros se detinham no exterior do portão. Mas a entrada no convento remete evidentemente para outros filmes de Oliveira, da chegada do automóvel da gente da cidade a Curalha em O Acto da Primavera, ou do percurso até ao palco em Benilde ou a Virgem-Mãe, à chegada dos convidados, mais recentemente, em Os Canibais.

 

"Quem neste convento entrar, não ver, não ouvir, não falar", diz a legenda inicial atribuída a frei Agostinho da Cruz. Mas a regra monástica aplica-se com maior rigor ao território de "não" que é uma das características peculiares do cinema de Oliveira, aliás levada ao título de um dos seus fimes ambiciosos, Non. Realmente, no entanto, se Oliveira entre a luz e as trevas, a pureza e a perversão, sempre se tem acercado invisível e indizível (essa alma de que, nas palavras de Agustina Bessa Luís, apenas se pode captar ou registar o rasto ou as cinzas), O Convento representa talvez a maior aproximação de Oliveira a um ponto de síntese, virtualmente inatingível, mas a que aspira o autor, todo o autor enquanto criador, e a própria arte.

 

Daí que a questão central não seja já a do encontro na morte dos filmes "camilianos", Amor de Perdição e Francisca e numa revisão posterior O Dia do Desespero, ou a ressurreição dos filmes crísticos, que mais ou menos explicitamente percorre O Acto da Primavera, O Passado e o Presente, A Divina Comédia e de certa maneira, Vale Abraão, ou até pelo lafo sacrificial, "regiano", Benilde ou a Virgem Mãe e O Meu Caso, ou os parentes pobres que serão Os Canibais e A Caixa, mas nada mais nada menos que a imortalidade, objecto do magnífico diálogo de Baltar (Luís Miguel Cintra) com o professor Michael Padovic (John Malkovich) no cimo do monte, com o mundo a seus pés, sinal de toda a verdadeira grandeza e de todas as tentações.

O Convento desenvolve-se de uma forma particularmente precisa, como o mecanismo de relógio que pontua o filme. Primeiramente expõe-se o lugar, inicialmente através de Baltar, e depois revelando uma segunda passagem, ou entrada, através de Baltasar (Duarte de Almeida, pseudónimo cinematográfico de João Bénard da Costa). Depois expõem-se as personagens e os seus pontos de confluência ou sobreposição através de Baltasar e Berta (Heloísa Miranda). Mais uma vez, como em O Passado e o Presente, Manoel de Oliveiraaproxima os personagens até à sobreposição, nomeadamente de Hélène (Catherine Deneuve) e Piedade (Leonor Silveira) na porta da biblioteca, mas de certa maneira defende-se dessa vertigem fusional pela distância dos observadores, testemunhas silenciosas e de outra classe social, neste caso o pescador, em O Passado e o Presente, o jardineiro, ou em Vale Abraão, a surda-muda. Destas personagens Manoel de Oliveira parece querer extrair uma sabedoria, sem a retórica de alguns dos diálogos de Agustina Bessa Luís (Francisca e Vale Abraão), ou de tiradas mais filosóficas de Non ou a Vã Glória de Mandar ou A Divina Comédia, mas também observando com  lucidez que "não convém acreditar em tudo o que o pescador diz".

 

Expostos o lugar e os personagens, O Convento define o conflito, não tanto de ordem metafísica mas sim relacional: o desencontro do casal Hélène/Michael nos quartos contíguos, sob o olhar de Baltar (encenação de movimentos semelhantes ao final na igreja de O Passado e o Presente), e o encontro de Berta e Baltasar, com as velas a sinalizarem entre o sagrado e o demoníaco a vertigem fusional de um pacto que ameaça a identidade. Aliás se as lendas da primeira aproximação ao mosteiro referem o brilho salvador de uma imagem de Nossa Senhora sobre um barco em naufrágio, que acaba por se deslocar da própria materialidade da imagem sagrada, estas cenas, que precedem a consciência no cimo do monte da individualidade/imortalidade da pesquisa de Michael de uma outra identidade, surpreendentemente interrogada, de um dramaturgo tão referencial/reverencial como Shakespeare (hipoteticamente Jacques Pires, judeu de origem espanhola), mostram-nos no escuro da noite as luzes das lanternas que só depois identificamos com Baltasar e Berta.

 

A partir daí O Convento centra-se nos diálogos cruzados de Michael e Piedade, na biblioteca, Baltar e Hélène, na gruta, e depois invertendo-se a associação com Baltar e Piedade, na floresta, onde se perderão (no paraíso ou no inferno ou simplesmente na natureza do ciclo vital?), e Michael e Hélène, na praia, ela renascendo da água, ele vulgarizando-se no abandono da pesquisa ou da tentativa de conhecer, num esquema que parece construído com um sentido da métrica, poética e musical, idêntico ao dos movimentos de Vanda em O Passado e o Presente entre a humilhação de Firmino e a evocação de Ricardo, o suicídio de Firmino e a reaparição de Ricardo, e finalmente a humilhação de Ricardo e a evocação de Firmino, inversão da situação inicial.

 

Um dos aspectos centrais do cinema de Oliveira que tem um desenvolvimento novo em O Convento é o da utilização expressiva dos actores. Dispondo de Malkovich e Deneuve, Manoel de Oliveira corria e fazia-os correr a eles alguns riscos. Convocando Leonor Silveira e Luís Miguel Cintra e dando-lhes uma grande margem de liberdade, Oliveira preferiu espelhar nos rostos reflexivos e surpresos de Malkovich e Deneuve muito do clima austero e fascinante, misterioso e sensual, que percorre O Convento e que uma certa indefinição da imagem de Mário Barroso sublinha, sem o uso das cores quentes e dos cenários requintados de outros filmes de Oliveira, correspondendo aqui a pedra à abertura à presença real dos actores, herdada do neo-realismo, como Manoel de Oliveira explica em entrevista a Rodrigues da Silva em Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13/9/95, e que, depois do trabalho com Maria de Medeiros e A Divina Comédia, evidentemente Leonor Silveira em Vale Abraão, e Beatriz Batarda em A Caixa, parece ter definitivamente atraído Oliveira, que entre O Acto da Primavera e Os Canibais experimentara diferentes gamas do registo de uma voz que apenas poderia dar corpo a um texto que lhe não pertence, perspectiva atenuada já na conversa dos soldados de Non, na cantilena "soldado que vais para a guerra", a sugerir a dos miúdos de Aniki-Bobó sobre a morte e as estrelas que se pagam no céu.

 

Depois de Os Canibais Manoel de Oliveira começa a usar a música como um elemento da cultura, que integra como os outros elementos ao serviço do seu filme, agora sem colaboração de João Paes, e dos actores já não espera um registo tão uniforme, abrindo-se em O Convento a um registo babélico que incorpora o português, o acento brasileiro, o inglês, o francês e mesmo o alemão, numa estrutura polifónica que exprime de certa maneira o dilema entre a parte individual e o todo divino que dilacera os seus personagens mais significativos.

 

A linguagem, ela própria, parece já não ser para Manoel de Oliveira apenas uma base de trabalho prévio, que se convoca como texto que re-presenta uma vida que não é dao ao cinema captar, mas sim um objecto que em si recria e significa a experiência. No cinema de Manoel de Oliveira frequentemente o o texto precede a imagem, e onde se suspeita a redundância surgem novos elementos que mostram que ver é um vocábulo de um nível diferente de saber, mas em O Convento Manoel de Oliveira ensaia algo de novo, no encontro nocturno de Michael e Piedade, no beijo das sombras como algo não directamente visível, e depois recontado por palavras como um sonho, resolvendo também assim o carácter onírico de todo o seu cinema e ao mesmo tempo a sua bem sustentada observação de que "o sonho não é filmável" (entrevista a A Grande Ilusão, nº 13/14) em contradição com o sonho de Carlitos em Aniki-Bobó e o de Rashkolnikov em A Divina Comédia. A realidade-sonho de Piedade, que diz ter "saudades de Deus" é palavra, é linguagem, mas voltada para o futuro. A linguagem torna-se assim não a herança cultural da humanidade, mas a sua capacidade de invenção, um lugar do futuro e não do passado. Por isso também O Convento nos transmite uma imagem de indecisão, em que a palavra tem de acrescentar alguma coisa à realidade que mistura anjos e demónios e não se pode resolver no sonho auto-acusatório de Carlitos em Aniki-Bobó, na sequência da lenga-lenga "tu és o polícia, tu és o ladrão".

 

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