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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Desejado Ou As Montanhas Da Lua - Paulo Rocha (1987)


O DESEJO E O ABISMO 

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 7, Março/1989, pgs. 41-42

 

 

Jorge Silva Melo numa entrevista recente chamava a atenção para a carreira de muitos autores que após um eclipse prolongado surgem subitamente com uma verdadeira explosão criadora, podendo ocorrer no entanto o inverso. Como se houvesse necessidade de uma silenciosa gestação ou, pelo contrário, as energias se esgotassem uma vez atingido determinado ponto. No cinema português teremos tendência imediatamente a pensar em Manoel de Oliveira, mesmo se o longo intervalo entre Aniki-Bobó e O Acto da Primavera, ou mais precisamente O Passado e O Presente, se deve também aos condicionalismos políticos a que a arte esteve sujeita. Paulo Rocha, porém noutro tempo e de outra maneira, surge com um percurso em certo sentido semelhante. O longo silêncio não corresponde realmente a um período de inactividade ou indiferença e de repente surgem os frutos com insuspeitada vitalidade.

 

Depois de termarcado de uma forma bem significativa o surgimento do cinema novo português nos anos sessenta, com Verdes Anos e Mudar de Vida, Paulo Rocha começa um percurso abismal com A Pousada das Chagas, encenação do martírio aceite com satisfação mística, S. Sebastião pedindo o prolongamento dos seus sofrimentos numa interrogação ao mesmo tempo do tipo de representação que a arte proporciona. Por essa época Paulo Rocha não tinha ainda amadurecido o projecto de biografia de Wenceslau de Moraes que demoraria quase doze anos a concluir mas A Ilha dos Amores adivinhava-se quer no plano estético quer na temática obsessiva da morte.

 

A Ilha dos Amores é um ritual fúnebre, um filme sufocante nas próprias referências culturais e estéticas que convoca e que passarão despercebidas ao espectador comum. Verdadeiramente um mausoléu.

 

Como poderia Paulo Rocha sobreviver a um filme "definitivo" como A Ilha dos Amores? Inteligentemente A Ilha de Moraes é a peregrinação vivificadora. Paulo Rocha regressa aos mesmos lugares e às mesmas memórias, não apenas com a obsessiva constância e fidelidade à obra de Wenceslau de Moraes, mas talvez para se libertar dele. A Ilha de Moraes só aparentemente é ainda um filme sobre Moraes, já que o principal protagonista é o próprio Paulo Rocha que aparece à fente das câmaras, movido por sentimentos visíveis e o gosto do convívio, perguntando mas também respondendo, hesitando, exprimindo-se numa língua estrangeira, com o acréscimo de verdade de quem domina mal a expressão, num discurso, verbal e fílmico, que nada tem em comum com a organização interna perfeccionista de A Ilha dos Amores.

 

É esse espírito que permanece ainda em O Desejado ou As Montanhas da Lua e Máscara de Aço contra Abismo Azul. O que surpreende talvez é o humor que preside a ambos os projectos face à austeridade mística de A Pousada das Chagas e A Ilha dos Amores

 

Inspirado ainda num texto japonês do século X, Romance de Genji de Murasaki Shikibu, O Desejado é uma história de sedução e sobrevivência. "É a história muito misteriosa, de um príncipe que seduz irresistivelmente toda a gente, mulheres e inimigos, sem fazer esforço (...) O prazer fugidio que ele dá - generosamente - a todas as pessoas é tão intenso que se torna mortal. Quando as pessoas se banham no rio do prazer absoluto morrem, pois descobrem a outra face da realidade, a realidade absoluta. (Paulo Rocha in "Documentação da Cinemateca Portuguesa".

 

O Desejado é uma comédia e é a consciência da comédia, curiosamente, que salva João (Luís Miguel Cintra), que lhe permite sobreviver. Paulo Rocha encena uma trama de relações obscuras tanto no plano sentimental como no plano político. As personagens circulam num clima de incerteza (João talvez seja filho de Manuel, Tiago talvez seja filho de João, e finalmente a criança que vai nascer não se sabe ao certo de quem é filho). Do mesmo modo as ligações políticas são confusas (ironicamente o democrata-cristão chamar-se-á Amadeu dos Anjos e o socialista Salvador, mas independentemente das simbologias dos nomes parece haver uma cumplicidade que os une para lá das aparências). A sequência final da "apresentação" do menino, com a presença das câmaras de televisão, que pontuam vários momentos do filme, é também a aceitação da ambiguidade, de uma opacidade que parece inerente à vida humana. Tiago e António desaparecem, morrem, talvez por não poderem suportar essa realidade. Antónia é uma radical que vive em Itália ligada ao terrorismo, onde a vai buscar João a pedido de Manuel, seu pai, um velho moribundo que representa bem o "antigo regime". Ela é um elemento de perturbação, como nas sequências do Palácio de Sintra em que se apresenta já visivelmente grávida. Aliás essa é uma das sequências do filme mais ricas de elementos em simesmo dissonantes a que o filme dá uma ligação e um sentido, que passa pelas aproximações e conflitos das principais personagens e por um rápido itinerário na História dos Reis de Portugal, de D. Sebastião, "o desejado", a D. Afonso VI, "o indesejado".

 

É ainda o desejo, o fascínio das formas e das aparências, e o abismo, a confusão que a intimidade estabelece, que vão pautar os caminhos das várias personagens. E, como se diz em A Pousada das Chagas, "nunca ninguém se perdeu, tudo é verdade e caminho" (F. Pessoa).

 

Máscara de Aço Contra Abismo Azul marca um aspecto diferente da obra de Paulo Rocha. "Contra": como diz Paulo Rocha "Máscara e Abismo são as duas faces opostas de Amadeo de Souza Cardoso (in "Documentação do Festival de Cinema da Figueira da Foz"). Esta oposição que não existe nos filmes precedentes debate-se na própria estrutura interna do filme. O filme é uma "encomenda" da televisão mas nem por isso é menos pessoal. Sem a solenidade de A Pousada das Chagas - bastaria o tom caricatural da sequência inicial da inauguração da exposição de Amadeo para marcar a diferença -, mas de algum modo prolongando-o na pesquisa das formas de representação da pintura. Máscara de Aço Contra Abismo Azul ultrapassa o documentário didáctico, é uma recriação no sentido em que as cores, os grafismos, até as próprias personagens, Máscara de Aço e Abismo Azul, se destacam das obras de Amadeo, ganhando uma outra vida que é a contribuição de Paulo Rocha, a sua leitura da obra do pintor. Leitura que em todo o caso não se deixa hipotecar ao valor das palavras, já que "os lábios mentem, os olhos não". Máscara de Aço Contra Abismo Azul é um filme para olhar e se ver - como compete à pintura e ao cinema.

 

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