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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Dia Do Desespero - Manoel De Oliveira (1992)

A IMPOSSIBILIDADE DO DOCUMENTÁRIO 

 

Sob a aparência engenhosa de um fil­me didáctico Manoel de Oliveira pro­longa de uma forma brilhante a sua pes­quisa estética e vai mais longe na temá­tica da morte que  de  uma  maneira  ou de outra se tem mostrado central à sua obra, já desde filmes que não  foram  além do projecto, como o já distante "Angélica", publicado pela Cinemateca Portuguesa juntamente com outros iné­ditos. "O Dia do Desespero" é uma visi­ta à casa de Camilo em S Miguel de Ceide, procurando aí o rasto do escritor suicida e da sua última história de amor, talvez, na óptica de  Oliveira, a síntese de todas as histórias de amor. Camilo Castelo Branco amava a morte desde a juventude e a cegueira não terá sido a causa de um acto desesperado, antes talvez o pretexto de um gesto longa­mente preparado - eis a tese central do filme de Oliveira

Camilo Castelo Branco afirma, numa das cartas em que Manoel de Oliveira estruturou o seu extraordinário texto ci­nematográfico, " amar de preferência o sossego do túmulo", e este fascínio da morte funciona paradoxalmente como a sua negação, de que se encontram aliás numerosos exemplos na obra de Mano­el de Oliveira, a protagonista sucessiva­mente amando os maridos mortos em "O passado e o presente", Mariana atirando-se ao mar num último abraço ao cadáver de Simão em "Amor de perdi­ção", Jose Augusto falando com o cora­ção morto da mulher em "Francisca", o ferido envolto em ligaduras olhando a agonia do alferes Cabrita em "Non", a substituição de Ruy Furtado morto du­rante a rodagem pelo próprio  autor  numa cena que precede o seu enforca­mento a nível ficcional em "A divina co­média".

Esta negação da morte é frequentemente referida à ideia cristã de ressurreição, mas a essência da reflexão de Manoel de Oliveira parece ter  a  ver  com o próprio cinema como registo da vida que porém não pode ser dissociada ou destacada do próprio momento. De repente, e por acção do aparelho cinematográfico, é como se tudo o que se pode registar fosse morte, ou fosse já a morte, e a própria realidade se tornasse infilmável. Daí que a ficção para Manoel de Oliveira pareça resultar da impos­sibilidade do documentário, ele que des­de o início da sua carreira com "Douro, faina fluvial" sempre parecera pelo me­nos ate "O acto da Primavera" fascina­do precisamente pelo documentário.

Embora destinado a ser conhecido apenas após a sua morte, Manoel de Oliveira filmou em 1982 (há 10 anos, portanto) "Visita - memória e confissõ­es" sobre a sua própria casa, que dei­xou nesse momento, e atrevo-me a ima­ginar que esta visita à casa de Ceide se articulará de certa maneira com esse fil­me destinado a ser póstumo, sendo que entre esses dois filmes e depois da "tetralogia dos amores funestos" ("O pas­sado e o presente", "Benilde", "Amor de perdição" e "Francisca") parece  ha­ver uma linha comum, particularmente após a encenação teatral de " De profundis" de Agustina  Bessa-Luís, com "Os canibais", "Non", "A divina comé­dia" e agora "O Dia do Desespero".

Não podendo interrogar o próprio Ca­milo, como dizem os narradores- actores, "O Dia do Desespero" vai procurar entendê-lo nos seus despojos, escritos e pertences, em certo sentido prolonga­mentos do cadáver que ele próprio pre­zou em vida com frases tão impressio­nantes como aquela escrita ao oftalmo­logista Edmundo Magalhães ( Diogo Dória) - "sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país" - ou na carta em que oferece o seu cadáver a Freitas Fortuna (Luís Miguel Cintra) para integrar a sua "família póstuma".

Mas se Manoel de Oliveira, fiel à sua postura cinematográfica habitual, prefe­re os dados da realidade a qualquer in­terpretação - ele baseia-se em textos de Camilo e objectos da sua própria casa - há uma linha que percorre o filme e que associa a actividade criadora, em certa medida destinada a ser póstuma, a essa própria convivência com  a  morte.  Aliás na loucura do filho Jorge, e a atenção aos seus desenhos, ou a postura autista que evoca a célebre pintura de Munch, Ma­noel de Oliveira como que nos diz (ou será o próprio Camilo?) que a arte se encontia no vértice de um triângulo abissal, cujas outras referências são a loucura (Jorge) e a morte (como ausência da criação). O percurso de  Camilo  nos seus dias de desespero pode ser en­tendido como um romance, tão legítimo como os que celebrizaram o escritor, e de certa maneira a última forma de arte, ou a última história de amor, será a en­cenação da própria morte

O longo plano da roda da carruagem, ou a imagem controversa de Ana Plácido (Teresa Madruga) fumando charuto frente ao espelho, são momentos fortes de um filme que precisamente oscila entre a durabilidade do olhar e o momen­to efémero da encenação. Em certo sen­tido "O Dia do Desespero" e uma ficção fragmentaria em projecto, que mimetiza uma ficção realidade que o tempo vai deixando apagar. Daí o efeito que Manoel de Oliveira obtém da própria intervenção dos actores-narrado­res, absolutamente contrário ao que Bergman procurava em "A Paixão". Os actores apresentam-se e dirigem-se a câmara num registo em que se supõe se­rem eles próprios num nível  diferente  das personagens que em outras  cenas  vão representar. Mas a sabedoria de Manoel de Oliveira leva-o a tratar de maneira idêntica - ou seja como porta-vozes de um texto e não no registo natu­ralista de um depoimento - personagens reais, vivos, e personagens de ficção, já mortos. Todos eles  afinal  fazem  parte  de um mundo que não existe, que se chama cinema, e que apenas se pode en­tender como uma aproximação ao  mundo real, que não se pode registar na sua globalidade, ou, como muito bem en­tendia Truffaut a propósito de Bazin, como um equivalente do embalsamamento - e essa reflexão estaria já inscrita na própria presença de Manoel de Oli­veira no registo ficcional de "A divina comédia".

"O Dia do Desespero" é um filme surpreendente e talvez difícil de compreender para lá da sua aparência in­formativa e cultural que         justamente o destinará  a  um  interessante  objecto  de estudo nas   nossas  escolas. Mas, mais do que a obra, Manoel de Olivei­ra procura descobrir, em Camilo Cas­telo Branco, o homem - um dos "personagens" recorrentes da  sua filmo­grafia (outro será  José  Régio),  desde o já  distante "Famalicão"(1939), onde o suicídio de Camilo  é evocado na própria cadeira de baloiço  em que disparou sobre si próprio, aos mais re­centes "Amor de perdição" e "Francisca", neste último também  persona­gem ficcional no desempenho igualmente de Mário Barroso.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 9/11/1992 

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