A IMPOSSIBILIDADE DO DOCUMENTÁRIO
Sob a aparência engenhosa de um filme didáctico Manoel de Oliveira prolonga de uma forma brilhante a sua pesquisa estética e vai mais longe na temática da morte que de uma maneira ou de outra se tem mostrado central à sua obra, já desde filmes que não foram além do projecto, como o já distante "Angélica", publicado pela Cinemateca Portuguesa juntamente com outros inéditos. "O Dia do Desespero" é uma visita à casa de Camilo em S Miguel de Ceide, procurando aí o rasto do escritor suicida e da sua última história de amor, talvez, na óptica de Oliveira, a síntese de todas as histórias de amor. Camilo Castelo Branco amava a morte desde a juventude e a cegueira não terá sido a causa de um acto desesperado, antes talvez o pretexto de um gesto longamente preparado - eis a tese central do filme de Oliveira
Camilo Castelo Branco afirma, numa das cartas em que Manoel de Oliveira estruturou o seu extraordinário texto cinematográfico, " amar de preferência o sossego do túmulo", e este fascínio da morte funciona paradoxalmente como a sua negação, de que se encontram aliás numerosos exemplos na obra de Manoel de Oliveira, a protagonista sucessivamente amando os maridos mortos em "O passado e o presente", Mariana atirando-se ao mar num último abraço ao cadáver de Simão em "Amor de perdição", Jose Augusto falando com o coração morto da mulher em "Francisca", o ferido envolto em ligaduras olhando a agonia do alferes Cabrita em "Non", a substituição de Ruy Furtado morto durante a rodagem pelo próprio autor numa cena que precede o seu enforcamento a nível ficcional em "A divina comédia".
Esta negação da morte é frequentemente referida à ideia cristã de ressurreição, mas a essência da reflexão de Manoel de Oliveira parece ter a ver com o próprio cinema como registo da vida que porém não pode ser dissociada ou destacada do próprio momento. De repente, e por acção do aparelho cinematográfico, é como se tudo o que se pode registar fosse morte, ou fosse já a morte, e a própria realidade se tornasse infilmável. Daí que a ficção para Manoel de Oliveira pareça resultar da impossibilidade do documentário, ele que desde o início da sua carreira com "Douro, faina fluvial" sempre parecera pelo menos ate "O acto da Primavera" fascinado precisamente pelo documentário.
Embora destinado a ser conhecido apenas após a sua morte, Manoel de Oliveira filmou em 1982 (há 10 anos, portanto) "Visita - memória e confissões" sobre a sua própria casa, que deixou nesse momento, e atrevo-me a imaginar que esta visita à casa de Ceide se articulará de certa maneira com esse filme destinado a ser póstumo, sendo que entre esses dois filmes e depois da "tetralogia dos amores funestos" ("O passado e o presente", "Benilde", "Amor de perdição" e "Francisca") parece haver uma linha comum, particularmente após a encenação teatral de " De profundis" de Agustina Bessa-Luís, com "Os canibais", "Non", "A divina comédia" e agora "O Dia do Desespero".
Não podendo interrogar o próprio Camilo, como dizem os narradores- actores, "O Dia do Desespero" vai procurar entendê-lo nos seus despojos, escritos e pertences, em certo sentido prolongamentos do cadáver que ele próprio prezou em vida com frases tão impressionantes como aquela escrita ao oftalmologista Edmundo Magalhães ( Diogo Dória) - "sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país" - ou na carta em que oferece o seu cadáver a Freitas Fortuna (Luís Miguel Cintra) para integrar a sua "família póstuma".
Mas se Manoel de Oliveira, fiel à sua postura cinematográfica habitual, prefere os dados da realidade a qualquer interpretação - ele baseia-se em textos de Camilo e objectos da sua própria casa - há uma linha que percorre o filme e que associa a actividade criadora, em certa medida destinada a ser póstuma, a essa própria convivência com a morte. Aliás na loucura do filho Jorge, e a atenção aos seus desenhos, ou a postura autista que evoca a célebre pintura de Munch, Manoel de Oliveira como que nos diz (ou será o próprio Camilo?) que a arte se encontia no vértice de um triângulo abissal, cujas outras referências são a loucura (Jorge) e a morte (como ausência da criação). O percurso de Camilo nos seus dias de desespero pode ser entendido como um romance, tão legítimo como os que celebrizaram o escritor, e de certa maneira a última forma de arte, ou a última história de amor, será a encenação da própria morte
O longo plano da roda da carruagem, ou a imagem controversa de Ana Plácido (Teresa Madruga) fumando charuto frente ao espelho, são momentos fortes de um filme que precisamente oscila entre a durabilidade do olhar e o momento efémero da encenação. Em certo sentido "O Dia do Desespero" e uma ficção fragmentaria em projecto, que mimetiza uma ficção realidade que o tempo vai deixando apagar. Daí o efeito que Manoel de Oliveira obtém da própria intervenção dos actores-narradores, absolutamente contrário ao que Bergman procurava em "A Paixão". Os actores apresentam-se e dirigem-se a câmara num registo em que se supõe serem eles próprios num nível diferente das personagens que em outras cenas vão representar. Mas a sabedoria de Manoel de Oliveira leva-o a tratar de maneira idêntica - ou seja como porta-vozes de um texto e não no registo naturalista de um depoimento - personagens reais, vivos, e personagens de ficção, já mortos. Todos eles afinal fazem parte de um mundo que não existe, que se chama cinema, e que apenas se pode entender como uma aproximação ao mundo real, que não se pode registar na sua globalidade, ou, como muito bem entendia Truffaut a propósito de Bazin, como um equivalente do embalsamamento - e essa reflexão estaria já inscrita na própria presença de Manoel de Oliveira no registo ficcional de "A divina comédia".
"O Dia do Desespero" é um filme surpreendente e talvez difícil de compreender para lá da sua aparência informativa e cultural que justamente o destinará a um interessante objecto de estudo nas nossas escolas. Mas, mais do que a obra, Manoel de Oliveira procura descobrir, em Camilo Castelo Branco, o homem - um dos "personagens" recorrentes da sua filmografia (outro será José Régio), desde o já distante "Famalicão"(1939), onde o suicídio de Camilo é evocado na própria cadeira de baloiço em que disparou sobre si próprio, aos mais recentes "Amor de perdição" e "Francisca", neste último também personagem ficcional no desempenho igualmente de Mário Barroso.
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 9/11/1992
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