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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Lugar Do Morto - António-Pedro Vasconcelos (1984)

O REGRESSO DO SONHO


Por vezes em determinadas cinematografias surge a inslstencia num mesmo tema sem que isso naturalmente signifique uma fórmula de sucesso comercial prevísivel. Frequentemente é um aspecto da conjuntura sociocultural que sem que os autores porventura tenham uma perfeita consciência disso aflora repetidamente nas suas   preocupaçoes. O LUGAR DO MORTO de António-Pedro Vasconcelos  retoma em certa medida o tema de Sem Sombra de Pecado centrando-se no fascínio de uma mulher que aparece e desaparece envolta num mistério simultaneamente distante e desejável.

O filme de Fonseca e Costa ao situar a acçao num ambiente militar da época salazarista de alguma maneira propunha esse renascer do sonho no tempo da repressão. António-Pedro Vasconcelos chega a O LUGAR DO MORTO depois de Oxalá, um filme sobre os amores terminados e também em pano de fundo sobre o luto de uma revolução e de alguma forma depois da euforia do 25 de Abril e de um cinema de intervenção de plena expressão do autor mais sonhado que concretizado (e já antes com o prólogo que foi a geraçao Gulbenkian na pseudoprlmavera marcelista) e ultrapassado já o cinema da depressão de um masoquismo centrado na nostalgia e na lamentaçao do sonho perdido  que bem ou mal se associa a data do 25 de Novembro.

No começo destes anos 80 e de alguma forma um ciclo novo que se abre no cinema português e não é por acaso que os filmes que agora estão a surgir são verdadeiramente filmes de transição que se podem entender como o fecho de um conjunto que está para trás e assim ficará coerentemente encerrado mas mais criativamente constituem já a abertura de qualquer coisa que se anuncia no futuro do cinema português.

Que estas questões passam pelas estruturas de produção e pelas condições financeiras é facto que não poderá ser ignorado mas o que verdadeiramente nos interessa e por em destaque as opções estéticas que totalmente concretizadas ou simplesmente em esboço marcam as tendências que se desenham no cinema português.

O retorno do sonho e o fascínio da mulher acompanham em O LUGAR DO MORTO» o desejo da narrativa. Inspirando se longinquamente no filme negro americano mas sem o exagero das citações de puro gozo cinéfilo exteriores à economia narrativa do filme, António-Pedro Vasconcelos abandona uma certa construção de continuidade expressa nos planos sequêncla na narração ofí no recurso aos monólogos e conduz o espectador num percurso narrativo minuciosamente construído que se vem a encerrar de forma circular no cenário das primeiras cenas e igualmente com uma morte supostamente por suicídio.

Álvaro Serpa (Pedro Oliveira) é um jornalista que vive ao ritmo apressado da sua profissão num quotidiano que parece esquecer-se a cada dia novo que surge. De dois casamentos anteriores ficaram os dois filhos que de tempos a tempos interferem na sua vida constituindo um certo apelo de organlzaçao impossível sonhada como um regresso a província onde vive a mãe hipoteticamente pescando como fazia o pai já falecido. Saído mais uma vez apressado de casa de Marta (Teresa Madruga) após a filha dela ter entrado de madrugada no quarto onde dormiam Álvaro é testemunha de um suicídio e simultaneamenle da presença de uma mulher Ana Mónica (Ana Zanatti) que parece ter tido importância na vida do desafortunado companheiro de uma madrugada solitária à beira do mar na estrada marginal. Começando como um detective que procura a chave de um enigma Álvaro vai ficar cada mais preso da imagem de Ana Mónica mais até do que da sua presença fugidia vindo a encontrar a morte no mesmo local num acidente que será tomado por toda a gente como um suicídio.

A cena final aliás funciona como uma dúvida que se lança sobre todos os suicídios e afinal sobre um certo pessimismo que a uma primeira leitura o cinema de António-Pedro Vasconcelos parece encerrar.

Por outro lado os filhos dos divorciados que o inspector (Carlos Coe lho) enfaticamente diz que não têm denominação específica constituem uma presença constante em O LUGAR DO MORTO nao apenas como dado de uma nova realidade socíológica mas talvez como ampliaçao das questões da temática das perdas efectiyas que Oxalá Já abordara. É como se a confusão de sentimentos que António-Pedro Vasconcelos sempre diagnostica se redimisse numa certa historicidade de que aparentemente os seus personagens nao têm consciência embora os dados da realidade estejam lá no contexto que os envolve.

O LUGAR DO MORTO é ainda visivelmente a afirmaçao da maturidade do cinema de António-Pedro Vasconcelos e necessariamente do cinema português. Uma história segura, personagens bem desenvolvidas e interpretadas com desenvoltura, diálogos certos e servindo a construçao da narrativa, personagens secundártas que estabelecem um excelente contraponto na tensão  dramática que o filme vai criando, consciência perfeita do tempo narrativo são trunfos que António-Pedro Vasconcelos coloca sem duvida ao serviço de um projecto que consciente das suas limitações nao deixa por isso de funclonar como uma obra completa que não carece de justificações exteriores ao filme, condição necessária ao êxito que O LUGAR DO MORTO com certeza obterá.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 20/10/1984

 

O DESLIZAR DO MORTO

 

Há filmes que pelas reflexões que proporcionam justificam que os consideremos uma segunda vez principalmente em tempos em que o cartaz cinematográfico se não apresenta particularmente entusiasmante. Já aqui nos referimos (JN 20/X/84) a O LUGAR DO MORTO de António Pedro Vasconcelos, filme português que definitivamente comprova a maturidade do nosso cinema nem sempre, no entanto, devidamente reconhecida pelo público.

 

O LUGAR DO MOPTO é um filme em que a narrativa flui com toda a elegância quase funcionando o protagonista como um detective que procura resolver o mistério alias até final indecifrável da personagem interpretada por Ana Zanatti. Na sua construção bem elaborada O LUGAR DO MORTO é um filme quase clássico onde se conjuga a melhor memória de um certo expressionismo alemão do filme negro norte americano e de alguma nouvelle vague francesa que mais prezava o trabalho de argumento. É um filme narrativo onde aparentemente o sentido confessional de anteriores filmes de António-Pedro Vasconcelos não é tao visível

 

Mas isso evidentemente não equivale a dizer que O LUGAR DO MORTO é um filme óbvio onde a lógica narrativa e formal conduza a uma solução relativamente linear em que a mundividência do autor se esconda no simples contador de historias. Pelo contrário, por o filme recorrer menos à narrativa verbal precisamente se encontram zonas de incerteza onde a experiêncta menos consciente do autor pode tocar o espectador sem a mediação das teorias mais ou menos racionalizadoras.

 

Nesse sentido vale a pena ler o filme para além da mulher de um sonho, do seu retrato intrigante e do seu fascínio que deixa no filme também de certa maneira o rasto de um perfume usado aliás fora do sentido metafórico como leit rnotiv de um fio narrativo secundário desenvolvido com um certo humor em tomo do inspector Moreira (Carlos Coelho).

 

Realmente O LUGAR DO MORTO é também o retrato de um quotidiano masculino vivido entre o sonho (Ana Mónica) e o desespero (suicídio) mais ou menos deliberado com dificuldades de assentar os pés na terra.

 

A citação inicial (não é por correres que escapas ao destino) só parcialmente será uma chave satisfatória para o filme e não naquele sentido mais evidentemente fatalista mas antes na ligeireza que inevitavelmente se associa à corrida.

 

De alguma forma o filme talvez fique definido na máxima economia expressiva em duas cenas, a inicial (em que Álvaro sai precipitadamente de casa de Marta após a filha deste os acordar na cama em que dormiam juntos) e a da resolução narrativa quase no final (em que Álvaro morre num suposto suicídio quando adormece no carro mal travado que lentamente deslizo para o precipício).

 

De um lado há os filhos - a filha de Marta cuja interferência inoportuna põe o protagonista em fuga mas também os filhos de Álvaro muitas vezes presentes e apelando para uma relação menos formal ou ainda o filho que Marta não chega a ter contando a Álvaro que fizera um aborto De certa maneira eles são as raízes numa ligação entre as gerações que prolonga a memória do pai evocada na ida a aldeia. Do outro lado há o sonho idealizado, mas também o vazio para o qual Álvaro se deixa simplesmente deslizar. Álvaro não se deixa prender e escorrega imperceptivelmente para o abismo. E o conflito parece situar-se numa tridimensionalidade das relações de amor e das relações de paternidade/filiação numa eterna adolescência onde o compromisso do real parece recusado (curiosamente na relação idílica projectada com o filho mais velho não há lugar para uma mulher). Para Álvaro nem resta a fuga a que recorriam os protagonistas de Perdido por Cem e de Oxalá.

A   morte   ocorre como que por  acidente como em Perdido por Cern, mas traduzindo toda uma pressentida impossibilidade do amor. Nesse sentido mais  que  uma  trilogia que se encerra há no plano temático um  certo  regresso ao ponto de origem,  a  um  exílio  interior,  autista,  a  que falta somente a decisão do  suicida.  A  resolução  do luto de entre os suicídios que marginavam a historia que  se  entrevia em Oxalá é agora posta em dúvida mas  curiosa mente há um evidente contraste com  a  maturidade  formal  que O LUGAR DO MORTO agora revela  E como se o conflito que António-Pedro Vasconcelo continuamente dramatiza se pudesse ainda encerrar  no  desejo  de  uma  dupla  idade  sugerida  na  canção  tema  de  Perdido   por  Cem - se  eu  tivesse  vinte  anos  e  soubesse  o  que  sei  hoje - com a    acentuação dos polos divergentes da emoção e da razão.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 9/11/1984 

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