A (IM)POSSIBILIDADE DE DIZER
Devo começar por afirmar que a meu ver O MEU CASO é o melhor filme de Manoel de Oliveira, coerente com toda a sua belíssima obra anterior e praticamente perfeito na sua organização interna. Realmente o filme condensa da melhor maneira as preocupações temáticas e as pesquisas formais de toda a filmografia anterior do autor. Creio mesmo que alguns disparates que têm sido escritos sobre o filme traduzem a perplexidade que sem dúvida os filmes de Manoel de Oliveira originam e este tipo de acolhimento menos atento e muitas vezes corrigido algum tempo depois tem sido já o dispensado a filmes anteriores. Não haveria, porém, agora o alibi duma suposta incompatibilidade com outras condições de difusão como se pretendeu fazer crer aquando da estreia de Amor de Perdição inicialmente exibido na teIevisão e objecto de algumas críticas precipitadas e mal justificadas. O MEU CASO como de uma forma geral todo o cinema de Manoel de Oliveira exige uma disponibilidade que o permita entender na sua proposta mais essencial e essa é sem dúvida uma característica de toda a verdadeira criação artística.
De alguma forma O MEU CASO pode ser considerado um desenvolvimento da cena capital de Francisca, o campo contra-campo repetido sobre o coração morto de Francisca em que José Augusto se interroga sobre o que é o amor, o que queremos dizer quando dizemos que amamos alguém. Falou-se a propósito desse filme de cinema desalmado, mas creio que Manoel de Oliveira pretende mesmo essa coisa paradoxal que é filmar a alma, ou seja, a essência profunda, o fundamento definitivo da individualidade e da própria natureza humana. Esse objectivo é na verdade incessível e por isso Oliveira pode apenas filmar o que resta, o que fica, o rasto que a câmara pode registar já sem vida, mas evidenciando em todo o seu significado essa essência. Por isso o desconhecido (Luís Miguel Cintra) na peça de José Régio em que o filme se inspira não pode chegar a expor o seu caso. Porque verdadeiramente o caso de cada um fica sempre para além do teatro, do cinema ou das palavras. Trata-se de dizer um não dito, o desejo essencial do dizível.
Aliás é muito interessante a forma como Oliveira articula as três repetições da pequena peça de José Régio - e répétitions em francês, língua da versão original que foi posteriormente dobrada em português, tem também o sentido de ensaio. Tal como na referida cena de Francisca - mas o processo no cinema de Manoel de Oliveira remonta já pelo menos a O Passado e o Presente - há uma repetição. Desta vez, contudo, a palavra vai ocupar um outro lugar, uma outra função. A segunda repetição de O MEU CASO é em preto e branco, muda e com um texto off de Samuel Beckett (Pour finir encore) e a terceira repetição socorre-se de imagens televisivas de algumas atrocidades que diariamente consumimos - aqui sem dúvida recordamos idêntico processo de O Acto da Primavera na morte de Jesus - enquanto os actores debitam um discurso numa língua ininteligível. Na realidade as três versões são diferentes tentativas de dizer e a afirmação irredutível da impossibilidade de o dizer.
O texto de Becket aliás afirma claramente. É-me impossível dizê-lo...aqui um longo silêncio. E ainda num paralelo com a cena de Francisca, não vou falar de vermes e do pó.
Morte e ressurreição, sofrimento e redenção, Guernica e Gioconda, esse o sentido de cada caso (o meu caso, o caso do Homem, segundo o próprio texto de Régio). E o desconhecido da peça acabará por dizer que nada impedirá o homem livre e ousado de comunicar aos homens a sua mensagem que é divina. Só que essa comunicação não é transparente, não pode ser posta em cena porque é de um outro lado do palco, depois do pano descer como se diz na própria peça de Régio.
Por isso faz todo o sentido a ligação que o filme estabelece com o texto bíblico do Livro de Job.
Também Job é o homem livre e ousado que não se corrompe apesar da aparência decadente, que não se entrega apesar do silêncio de Deus. De uma forma bastante imaginativa Oliveira retoma os mesmos actores e se o texto é outro a situação pode dizer-se que é a mesma (é uma quarta repetição). O silêncio de Deus é também a ausência de comunicação dos homens e o caos e o lixo de um mundo que parece inabitável (excelentes os cenários de toda a sequência de Job). E é ainda o dizível que parece conduzir a reflexão estética de Oliveira (na sequência inicial se não com o levantar do pano, mas na boca das máscaras teatrais o dilema de Job é o da recusa de dizer uma palavra que encerre o sentido no imediatamente sensível e a palavra de Deus é uma palavra de fora de cena objectivada no entanto num altifalante e portanto não completamente off).
Eis a humanidade a que pertencemos, senhores, cada um com o nariz em cima de si, cada um contra o vizinho, só todos juntos contra o homem suficientemente livre, suficientemente ousado, suficientemente são e forte, diz o desconhecido da peça de José Régio. E as cenas finais da harmonia de uma vida feliz de Job confirmado pela palavra de Deus são o verdadeiro hino de Oliveira ao Homem suficientemente livre, ousado, são e forte. A câmara recua, o palco torna-se visível, a imagem limita-se no vídeo e é ainda uma encenação. Ou uma hipótese como diria Manoel de Oliveira num debate no final da sessão na sala em que o filme está a ser exibido.
Filme sério e ao mesmo tempo cheio de humor, afirmação de fé e ao mesmo tempo com um lúcido sentido da incerteza O MEU CASO é a evidência do génio de ManoeI de Oliveira confirmado como Job num tempo "cheio de dias".
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 16/5/1987
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