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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Meu Caso - Manoel De Oliveira (1986)

CINEMA DO INDIZÍVEL

 

O Meu Caso, Manoel de Oliveira, Portugal, 1986 

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 7, Setembro/1988, pg.30 

 

"Cinza em vez de desejo. Consciência em vez de paixão. É isto uma alma?", Agustina Bessa Luís, Fanny Owen

O Meu Caso pode ser considerado, até certo ponto, um desenvolvimento da cena capital de Francisca, o campo-contracampo repetido sobre o coração morto de Francisca, em que José Augusto se interroga sobre o que é o amor, o que queremos dizer quando amamos alguém, quem é esse alguém que dizemos amar.

O cinema de Manoel de Oliveira não é um cinema desalmado, mas sim um cinema sobre a impossibilidade de filmar a alma, a essência profunda, o fundamento definitivo da individualidade e da própria natureza humana. Oliveira filma o que resta, o que fica, o rasto que a câmara pode registar. A cinza, o que se pode ver. A consciência, o que se pode encenar.

Da mesma forma o "desconhecido" (Luís Miguel Cintra) nunca chegará a expor o seu caso. Porque o caso de cada um fica sempre para além do teatro, do cinema e até das palavras. Estamos perante a impossibilidade de dizer e, ao mesmo tempo, o desejo essencial do dizível.

Ainda como na cena capital de Francisca, O Meu Caso constitui um exercício de repetições - "répétition" aliás na língua da versão original do filme tem também o sentido do ensaio. A primeira repetição é a própria peça de José Régio na sua mais imediata encenação teatral. A segunda repetição, com os mesmos actores e o mesmo cenário e uma marcação apenas ligeiramente diferente (como diferentes são as objectivas empregues e os enquadramentos), é filmada a preto e branco e sem palavras, ou antes substituindo os diálogos das personagens por um texto em "off" de Samuel Bekett (Pour Finir Encore). A terceira repetição, ainda com os mesmos actores e cenário e com novas alterações na construção da cena - não se trata portanto da repetição mecânica de um registo cinematográfico mas de uma nova versão, simultaneamente igual e diferente, numa lógica paradoxal tão ao gosto de Oliveira -, socorre-se de algumas imagens de atrocidades que diariamente consumimos na televisão num processo que retoma o final de O Acto da Primavera enquanto os personagens debitam um discurso numa língua inintelegível.

Várias tentativas de dizer e a afirmação irredutível da impossibilidade de o dizer. "É-me impossível dizê-lo...aqui um longo silêncio" afirma o texto de Beckett.

O "desconhecido" da peça de Régio acabará por dizer "nada impedirá p homem livre e ousado de comunicar aos homens a sua mensagem que é divina". Mas essa comunicação não é transparente, não pode ser posta em cena porque é de um outro lado do palco, depois do pano descer como se diz no próprio texto de Régio.

Por isso a quarta repetição, ainda com os mesmos actores mas com um texto e um cenário diferentes (excelente a figuração do caos e do lixo de um mundo inabitável), não começa com o levantar do pano mas na boca das máscaras teatrais que lhe estão sobrepostas. O dilema bíblico de Job é o da recusa de dizer uma palavra que encerre o sentido no imediatamente sensível. Daí que a palavra de Deus seja uma palavra de cena, em todo caso não completamente "off" já que se objectiva no altifalante. O silêncio de Deus é a ausência de comunicação dos homens, "cada um com o nariz em cima de si; cada um contra o vizinho", como diz o "desconhecido" de Régio.

As cenas finais da harmonia, de uma vida feliz, da "cidade eterna", de Job confirmado pela palavra de Deus, são o verdadeiro hino de Oliveira ao Homem...suficientemente livre, ousado, são e forte, como afirma a peça de José Régio. Morte e ressurreição, sofrimento e redenção, Guernica e Gioconda, esse o sentido de cada caso.

A câmara recua, o palco torna-se visível, a imagem limita-se no "vídeo", Oliveira no final a lembrar-nos que se trata ainda de uma encenação. Ou uma hipótese. Um ensaio.

Filme sério e simultaneamente cheio de humor, afirmação de fé e ao mesmo tempo com um lúcido sentido da incerteza, O Meu Caso é a evidência do génio de Manoel de Oliveira. confirmado como Job num tempo pessoal "cheio de dias". 

 

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