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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Passado E O Presente - Manoel De Oliveira (1972)

O Passado e o Presente, Manuel de Oliveira, Portugal, 1972

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Maia, Março 1974, pgs. 65-79

 

I Notas Preliminares

1 Sobre Manuel de Oliveira

A história de Manuel de Oliveira é uma história de êxitos (os filmes que concluiu) e de fracassos (os que não pôde concretizar). Dizer o que Manuel de Oliveira fez não é tudo mas é decerto falar das suas curtas-metragens, Douro, Faina Fluvial (1930), Já se Fabricam Automóveis (1939), Miramar, Praia de Rosas (1939), Famalicão  (1941), O Pintor e a Cidade (1956), O Pão (1959), A Caça (1963), As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965), sem excluir a supervisão de A Propósito da Inauguração duma Estátua (1968), de Artur Moura, A. Baganha e Lopes Fernandes e de Sever do Vouga, Uma Experiência (1968) de Paulo Rocha, e as longas-metragens Aniki-Bobó (1941) e O Acto da Primavera (1963), que são, em certa medida, como os anteriores, documentários.

Numa curta introdução basta apontar a importância de Douro, Faina Fluvial, de Aniki-Bóbó, de O Pintor e a Cidade, para só falar do autor que tão bem compreendeu os passos documentais que na Alemanha e na Rússia abriram caminhos que o cinema teimou em não percorrer, do autor que antes da voga do neo-realismo italiano soube fazer o cinema dos pobres, o cinema das crianças, ou do autor que não recusa o progresso da técnica, e sabe que a cor é um instrumento novo que exige estudo para ser criação mais do que engodo comercial.

Para o estudo do autor importa também saber dos projectos que não concretizou: Estátuas de Lisboa (apresentado incompleto sem autorização de Manuel de Oliveira), Gigantes do Douro (sobre a labuta da terra na fabricação do vinho do Porto), Saltimbancos (argumento que pôs de lado), Angélica (história de um fotógrafo que se apaixona por uma morta, não conseguiu apoio financeiro), O Coração (película científica sobre cirurgia cardio-vascular que ficou incompleto), e dois projectos que nem iniciou, Bairro de Xangai (sobre o alojamento e desemprego de um casal humilde) e Vilarinho das Furnas (a partir da obra de Jorge Dias).

Um traço importante na biografia de Manuel de Oliveira é a sua convivência com José Régio, desde cedo nos contactos com a revista Presença, e depois tomando-o como conselheiro em O Acto da Primavera, iniciando um filme a partir de A Casa Grande e anunciando agora o projecto de realizar Benilde ou a Virgem-Mãe.

 

2 Sobre a peça de Vicente Sanches

O Passado e o Presente é uma peça relativamente ignorada de Vicente Sanches que, desde logo, evidencia um estilo paredes-meias entre a tragédia e a comédia. Formalmente parece, como quase todos os textos teatrais escritos em Portugal, pouco adaptável a uma representação. Teatro para ler, estriba-se num diálogo muitíssimo elaborado, em que é constante a procura até um limite máximo de um requinte literário. Vicente Sanches usa, aliás, o diálogo como primeiro material da obra (o que desde logo não a recomendaria para o cinema), tirando assim partido da alternância dos conteúdos trágicos do argumento com o trocadilho anedótico dos diálogos.

Por outro lado as rubricas e anotações de encenação, são reduzidíssimas (e ainda essas mais literárias que técnicas), o que deixou a Manuel de Oliveira, como deixaria a qualquer encenação em teatro, uma ampla margem de interpretação. Com efeito a psicologia e os traços dos personagens, e principalmente os locais e cenários da acção, quase não estão apontados, o que lhe empresta um tom ambíguo.

A adaptação de Manuel de Oliveira, ao mesmo tempo que situa socialmente os personagens, dá uma interpretação crítica que, mesmo não sendo oposta ao espírito de Sanches, relativiza a peça e lhe dá um sentido que não era explícito. Neste sentido não se poderá falar de subversão de um texto (já que Manuel de Oliveira o respeita em absoluto) mas de localização. É essa localização que acaba por estabelecer um ponto de contacto com a restante obra documentarista de Oliveira, em posição semelhante de observação (participação) e crítica (distância), já ensaiada em O Acto da Primavera. Este paralelo aliás é fundamentalmente estético e identifica um estilo, já que, da adesão às expressões populares de religião à sátira dos mecanismos dum amor burguês e degenerado, vai uma radical diferença de intenção.

 

II Realização

1 A adaptação

A peça de Vicente Sanches, cujos diálogos permanecem na generalidade do filme, desenvolve-se em três actos cujo esquema (simétrico) será: 1º) Humilhação de Firmino/evocação de Ricardo/trasladação; 2º) Suicídio de Firmino/reaparição de Ricardo/alteração dos dados da questão; 3º) Humilhação de Ricardo/evocação de Firmino/agressão. O contraponto essencial centra-se na personagem Vanda e na sua constante adoração do marido anterior, situação que é logo evidenciada no título.

O filme não alterando basicamente o esquema da acção desdobra a atenção em outras situações passionais, já que a montagem alternada das cenas finais, sintetiza as três vias, que correspondem às três personagens femininas. Aliás essa cena final é, relativamente à peça, a principal alteração, de grande importância estética e temática. A peça acentuava no último acto a desagregação mental dos protagonistas culminando com uma cena de agressão entre Vanda e Ricardo; o filme termina numa cerimónia litúrgica de um casamento católico para que todos os personagens são convidados.

Por outro lado, do ponto de vista narrativo a peça impôs a necessidade de quebrar os hiatos da tradicional divisão por actos. Assim surgem duas sequências de ligação, muito bem conseguidas narrativamente, aliás com contactos evidentes dada a estrutura simétrica do original teatral.

A primeira corresponde à cerimónia de trasladação dos restos mortais de Ricardo. Habilmente o realizador passa do facto objectivo à ressonância interior em Firmino, preenchendo assim a transição no tempo e introduzindo o suicídio de Firmino. É notável a unidade de toda essa sequência no tema da morte: da morte de Ricardo à morte de Firmino.

A outra sequência posterior à revelação de Ricardo diríamos, por contraposição, centrada no tema da ressurreição: da ressurreição de Ricardo à ressurreição de Firmino. Do mesmo modo há aqui uma feição intimista, aliás com uma projecção mais impressionista nas flores do jardim. Aliás o paralelo ressurreição/flores é retomado da cena final de O Acto da Primavera. Ao mesmo tempo é extremamente subtil a descrição evolutiva de Vanda, ou se quisermos o "reaparecimento" de Firmino (animal desenterrado sob o olhar de Ricardo da floreira onde Firmino caiu, e observação posterior de Vanda colhendo flores desse canteiro, paralelamente com a entrada do retrato de Firmino embrulhado, a sua adoração no quarto e posteriormente a sua colocação na sala).

Há, no entanto, duas cenas em que Oliveira banalizando processos não consegue manter o nível da narração. Assim o "flash-back" do acidente (em especial o plano da ambulância) e o julgamento de Ricardo. Em relação ao primeiro tratava-se efectivamente duma dificuldade narrativa para a qual se aceitará a solução proposta. Mas já a cena do julgamento, sendo supérflua, acaba por resultar extremamente infeliz, embora não seja destituída de força a coincidência entre o processo de legalização do casamento e a desagregação da ligação afectiva. Pelo contrário. Mas o ambiente irreal (ou ambiente nenhum) e o diálogo pouco claro não encontram aí justificação.

 

2 O cenário

Vimos já que um dos métodos de adaptação de Manuel de Oliveira é a localização e nesse sentido podemos dizer que tudo parte da escolha do "décor". O Passado e o Presente foi filmado num palacete em Castelo Branco, pertença da família do autor da peça. Ao escolhê-lo Oliveira encontrou sem dúvida o ambiente mais adequado a toda a estrutura artificial da peça. Aliás um problema surgia na adaptação: fazer ou não fazer uma fotonovela. Manuel de Oliveira escolheu sem dúvida a conotação - alguns personagens identificam-se pela aparência com essa literatura fotográfica, Ricardo, Maurício - embora precisamente o cenário reponha os valores deslocados desse tipo de literatura. O alcance dessa opção vai no mesmo sentido do anulamento da pretensa universalidade da peça, identificando um estrato social com os produtos culturais e padrões de comportamento que exporta permitindo-lhe a sobrevivência.

Podemos dizer ainda que Oliveira consegue, com o auxílio da fotografia de Acácio de Almeida, pincelar um cenário onde a câmara se deleita, ora passando por ele a atenção enquanto os actores debitam todo o palavreado da peça, ora integrando os personagens, identificando-os com o seu palco. Em qualquer dos casos ganhando diferentes significações subjectivas, o cenário constitui sempre um traço do retrato em que se incluem os automóveis, os vestuários, as revistas de luxo, os jardins, etc.

 

3 Os movimentos de câmara

Estruturada quase totalmente no diálogo, as dificuldades de cinematização da peça eram, como se calcula, grandes. A um teatro filmado Oliveira foge movimentando a câmara, mas não se restringe à mudança de planos e às marcações dos personagens. O movimento é assim condição de participação. Movendo-se no cenário como os personagens, acompanhando ora uns ora outros, a câmara é um observador comprometido, o que confirma a intenção de Manuel de Oliveira respeitando o discurso sobre que baseou o seu filme.

Algumas vezes mesmo os movimentos de câmara apresentam aspectos muito curiosos, como por exemplo na cena em que Maurício e Honório cortam relações enquanto a câmara com Angélica discretamente se afasta "ouvindo" o diálogo enquanto observa um dos móveis da sala.

Outro dos processos por que Oliveira consegue uma linguagem especificamente cinematográfica, resulta de alguns tempos mortos, pontos de "suspense" em que tudo permanece em movimento (personagens, câmaras) enquanto o diálogo se interrompe - a cena anterior ao passeio no jardim antes da trasladação.

Esta presença da câmara que sempre se denuncia difere radicalmente da estrutura narrativa do teatro e do clássico cinema "hollywoodesco" - no cinema vulgar o movimento da câmara pelo contrário tem por função apagar a sua presença. Para além do que julgo ser uma pesquisa original no uso do movimento de câmara o filme denuncia outros mecanismos cinematográficos por exemplo na repetição da cena do suicídio. O processo cinematográfico é assim coerente com todo carácter não naturalista da acção e insere-se na linha das recentes teorias estéticas do cinema.

 

4 A montagem

A maturidade da linguagem cinematográfica de Manuel de Oliveira evidencia-se num outro processo que dá ao filme uma ampla intenção crítica, com a oportuna anotação de contrastes e elaboração de sínteses: a montagem. Assim, por exemplo, o enquadramento de Maurício com o cangalheiro em determinada cena do filme ou a montagem alternada dos pares/trios no casamento final, adquirem importância numa linguagem bem dominada.

Aliás a evidência desses contrastes e ligações nas cenas não directamente adaptadas da peça tem uma sinalização idêntica à presença da câmara nas outras cenas.

Muitas vezes seremos tentados a achar primários alguns desses contrapontos como o funeral da criança ou a senhora do tricot na cena do cemitério. Mas se pensarmos no menino das alianças ou nos "flashs" dos fotógrafosnessa magistral cena final, temos de render homenagens a uma linguagem que através do concreto consegue uma ampla comunicação de conceitos, num cinema que lembra o cinema mudo russo pelos processos, e o cinema de Bresson pela procura de uma "escrita" cinematográfica.

 

5 A música

A ninguém passará despercebida a importância da música em O Passado e o Presente. O seu uso obedece como o da imagem a mesmo princípio de relações significativas. Assim alguns trechos de Sonho de uma Noite de Verão de Felix Mendelsohn são escolhidos sempre com intenção, permitindo por exemplo defender o filme do ridículo, que cenas como o suicídio de Firmino ou a fuga de Vanda pela janela teriam se nenhum sinal anulasse a sua seriedade.

Aliás a cena do suicídio, com música solene a recomeçar após o fracasso da primeira tentativa, e toda a interpretação de Pedro Pinheiro semelhante ao toureiro que entre na arena, é de um humor negro imensamente conseguido, que permite ainda compreender a vitória que Firmino antevê.

A correlação da música com um humor satírico é aliás evidente no uso da marcha nupcial, que aparece durante o genérico quando se foca o portão da casa onde o filme se passa, e depois no esboço de agressão de Firmino a Vanda, no suicídio de Firmino, no anúncio da sua morte, no desencontro final entre Vanda e Ricardo e finalmente no casamento, só aí se justificando duma forma naturalista, mas ainda assim com uma intenção semelhante. Aliás essa correlação é muito importante na interpretação de todo o sentido do filme.

Um aspecto muito discutido do filme é a interpretação, em que as inflexões da voz, o tom enfático, marcam um modo de dizer que nem sequer é em mau sentido teatral. Se a afectação da pronúncia poderá ser mais um traço de caricatura do ambiente social satirizado pelo filme, a palavra ganha, como em O Acto da Primavera, um ritmo de certo modo musical, e esse é um aspecto que de um modo curioso ultrapassa e interpreta o diálogo da peça. O que pareceria literatura torna-se uma combinação de sons, perto do vazio, ou simplesmente melodioso.

 

III Personagens

1 Vanda - Firmino - Ricardo

Vanda é a figura central do filme e o ponto de encontro de todos os outros personagens. É efectivamente uma mulher atraente, à casa da qualos amigos acorrem, ainda que a não considerem inteiramente normal. Com efeito ela revela-se de extrema crueldade com Firmino, ironizando ainda sobre a sua morte. É , em todo o caso, o único personagem inseguro, incomodado. Todos os outros se adaptam, enquanto Vanda reage. Por isso talvez seja considerada louca. De algum modo pode dizer-se que ela procura o inalcançável e por isso rejeita o presente. É uma insatisfeita. Com a mesma intensidade com que menospreza o marido presente, Vanda adora o anterior. A sua procura não se volta para o futuro, antes se prende ao passado. Não ao passado enquanto recordação, mas enquanto mito. Mito que assume um colorido religioso - trasladação, adoração do quadro. A conotação entre esta atitude mística e um componente sexual, que muitos autores têm descrito, está presente num apontamento. Vanda despe-se no quarto diante do retrato de Firmino. O que se poderá relacionar com a alternância de apenas duas atitudes possíveis: dominar ou ser dominada.

Na órbita de Vanda há dois homens: Firmino e Ricardo. Firmino perante o tratamento de Vanda suicida-se; o seu suicídio é porém no próprio gesto um acto triunfante, como se escolhesse o único caminho de a possuir. "Do leito de núpcias ao leito de morte".

Ricardo substitui-se ao irmão gémeo, morto em acidente, continuando a frequentar a casa de Vanda. Recusa Vanda mas quando pensa ser fácil recuperá-la é batido pela memória de Firmino. Por isso, então, escolhe o confronto, a agressão. Note-se aliás que só escolhe essa via (cena da pistola) após verificar vedada uma saída igual à de Firmino (janela); pelo contrário Firmino desiste da agressão (corta-papéis) para optar pelo suicídio (o corta-papéis é pousado sobre a carta do suicídio).

 

2 Angélica - Honório - Maurício

Angélica é uma personagem cujas interrogações são interiores. É infiel ao marido mas ele não suspeita de nada. Nem há indício de que a sua relação com Maurício seja conhecida por mais alguém. Ao contrário de Vanda, insatisfeita também, procura o mais próximo. Em todo o casonão alimenta ilusões, criticando a superficialidade com que Maurício lhe jura amor eterno. Aliás Angélica sabe que Maurício não é radicalmente diferente de Honório.

Honório é o marido enganado. Não suspeita minimamente das relações da mulher com Maurício, como o demonstra a conversa ridícula em que ambos cortam relações. Ele próprio enquanto era enganado acusa Firmino de se prestar às infidelidades da mulher com um morto. Aparentemente Honório é o que mais acredita no casamento, e nas regras daquela microssociedade, interrogando-se sobre as coisas apenas para alimentar a conversa.

Maurício ao contrário é um "don juan", o único que não acredita nada no casamento, nem em relações afectivas duradouras. Aliás as suas promessas de amor eterno não passam de galanteios, não têm a mínima convicção. Ambiciona conquistar Noémia, como olhará para as raparigas do passeio quando vai de automóvel. É o menos integrado naquela sociedade. Entre ele e o cangalheiro há um paralelo, procurado pela câmara que os enquadra quando ele acaba de descer as escadas. Ambos são elementos de ligação entre os dois mundos do filme. 

 

3 Noémia - Fernando

Noémia, como Vanda e Angélica, vive insatisfeita com o marido. Simplesmente o encontra novamente fora da instituição casamento. De algum modo estabelece-se um trio fictício. Noémia e Fernando não são mais integrados nas relações sociais, tendo rompido a regra do casamento. A felicidade e a harmonia, no entanto, vivem com eles; são os únicos de que vemos uma cena familiar. Quando Maurício tenta conquistar Noémia ela mantém-se serena. No entanto a sua reacção não ultrapassa o nível superficial da conversa de salão, e a sua fidelidade não aparece como radicalmente diferente. É, no entanto, com sinceridade que depois disso abraça Fernando, e a sua emoção no casamento parece ultrapassar a máscara.

Fernando, no entanto, é o personagem menos definido; a própria cena familiar passa-se na sua ausência. Dele pouco nos é dado saber.

 

4 Personagens marginais

Os personagens secundários não aparecem muito definidos. Na generalidade são espectadores passivos das cenas da casa, permanecendo nos seus lugares de criados. Observam-nas umas vezes sem compreensão como o jardineiro, outras vezes com uma curiosidade que leva a espreitar fechaduras como a criada.

Apenas em duas cenas os seus comportamentos são comparados com os dos patrões, como um prolongamento e não em termos de alternativa. O cangalheiro é uma carcatura/paralelo de Maurício. Dos personagens marginais é o único que ultrapassa a observação, olhando Noémia e Angélica como olhara a criada. O "chauffeur" e a criada constituem outro polo das situações amorosas: não já independência da mulher, e os problemas que condiciona, mas o domínio do homem, fase anterior talvez mais generalizada, menos de élite, mas correlacionável com esta certamente. Um pequeno apontamento na margem das situações centrais do filme.

 

IV Propostas de interpretação

1 O palco e os observadores

Um dos primeiros pontos a considerar no filme é a divisão dos personagens em dois grupos radicalmente diferentes. Dum lado todos os personagens da peça, Vanda, Ricardo, Firmino, Honório, Angélica, Maurício, Noémia e Fernando, que fazem o seu jogo de palavras e situações. Do outro lado, personagens silenciosos, que não interferem, que não sabem interferir como é o caso do jardineiro. E, além dele, a criada, o «chauffeur», o cangalheiro. Estes últimos, personagens observadores (Maurício, o «donjuanismo», é também uma forma mais promovida de observação), prolongam-se noutros observados: a criança, que se contrapõe na cena do cemitério ou na do casamento, o operário, num belo travelling expressivo da situação dos trabalhadores engaiolados no esqueleto da obra que constroem. Ambos marginais neste filme mas muito mais próximos dos mundos retratados em anteriores filmes de Manuel de Oliveira.

Um primeiro nível de aproximação na pesquisa de um sentido para o filme é precisamente esse estabelecimento de contrastes, ligado aliás com o problema da conotação fotonovelística, em que a criada que espreita o buraco da fechadura pode prefigurar uma psicologia de consumo de valores e de esquemas de comportamento alheios e antagónicos da sua condição real.

 

2 O passado e o presente

Mas o sentido mais evidente na própria peça e que persiste no filme é o presente que estabelece como condição a libertação do passado. Vanda, como personagem é um exemplo de alienação idêntica ao dos observadores no filme, já que à intervenção no presente prefere uma adoração do passado que é colorida pela própria decoração de sinais religiosos - a mesa coberta de um pano branco e castiçais aos pés do retrato de Firmino. Aliás sentido semelhante tem a morte de Firmino e paralelamente a morte representada de Ricardo, ambas igualmente um refúgio a que não é alheia a tonalidade religiosa. Ricardo só mesmo esgotada a via do «martírio» opta pela agressão, justificada mesmo em termos de martírio. O que se denuncia ultrapassa a agressividade subjacente às expressões de amor (temática de um Losey ou de um Saura) mas reflecte o abandono, a fuga da realidade, os mecanismos de projecção. 

Numa obra, como a de Oliveira, muito marcada por uma intenção de desalienação religiosa na descoberta e purificação dos verdadeiros valores ligados à prática histórica dos pobres, este aspecto não pode ser considerado secundário, e revela uma muito pessoal interpretação dos dados da peça. Aliás não parece ser por acaso que cenas como a da trasladação e a da adoração do quadro são construídas de um modo solene (religioso) enquanto a cerimónia litúrgica do casamento não é rodeada de todo esse aparato, antes é entrecortada constantemente por montagens alternadas. 

 

3 A instituição e o amor

Que o filme condene totalmente o casamento-instituição e apresente em contraponto o casal Noémia-Fernando como o mais próximo em espírito de um amor cristão é tese que se pode demonstrar recorrendo às cenas finais, em que são eles os que apresentam maior sintonia com a celebração a que assistem. Porém a sua presença não é totalmente identificadora (mais integrados no conjunto da assembleia estão Angélica, o marido e o amante) e a própria atitude anterior contesta uma institucionalização do casamento.  Acrescente-se ainda que a recusa de Noémia ao "flirt" de Maurício, numa cena em que se quis ver a apologia da monogamia como limite à crítica social das formas de amor humano, estabelece um ponto comum a todas as outras situações, o do espírito que se submete a uma regra mais ou menos interiorizada (a resposta de Noémia é um encadeamento racional e não uma situação viva). Não haverá, porém, dúvida de que Manuel de Oliveira olha o amor de Noémia e Fernando com uma certa simpatia, mas o que principalmente vai denunciar é a alienação do humano na instituição social - muito expressivo como marcação dessa alienação é o caso dos «flashs» dos fotógrafos a cada passo da cerimónia.

 

 

4 A palavra do homem e a palavra de Deus

 

Quando nas últimas cenas do filme Oliveira sublinha a leitura do primeiro capítulo do Génesis como testemunho bíblico da criação do homem e da mulher e sua complementaridade no plano de Deus sobre a história dos homens, ou quando o sacerdote afirma que "o que Deus uniu o homem não separará", cria-se no espectador sem dúvida um verdadeiro ponto de tensão. Aparentemente e desconhecendo o fundo cristão da obra de Oliveira poderíamos interpretá-lo como a suprema sátira no retrato de mais um jogo de palavras. E efectivamente os casais do filme não estão muito longe daquele que ali celebra o casamento. Pelo contrário, no último plano enquanto toca a marcha nupcial são já Ricardo e Vanda que descem a nave da igreja quase a par - e isso terá mais significado correlacionado com o seu desencontro na procura de lugar na igreja. Porém a identificação do sim dos noivos com todo o resto do filme é contraposta à palavra de Deus, de Deus que é mais o sentido implícito e profundo da história dos homens e não o equivalente supremo das alterações graduais denunciadas pelo filme.

Aliás não podemos apressadamente concluir que a negação da fidelidade no amor se constrói da inconstância das emoções humanas. O comportamento dos personagens tem uma regra que é ao mesmo tempo a transgressão de outra regra: Vanda ama sempre o marido defunto, como Angélica alterna sempre o marido e o amante. Da história do filme se conclui que toda a relação amorosa tem uma regra. Da tensão, porém, com o espírito de Deus nasce uma interrogação profundamente cristã e profundamente dialéctica. Não há a obra fácil de catequese, mas a apresentação de um mistério que em última análise não nasce dos pressupostos e dos condicionamentos de uma sociedade. Por isso a nega. Ao assim distinguir valores burgueses de valores cristãos, o paralelo entre a leviandade amorosa e aquele casamento católico ganha dimensão na tensão entre as palavras dos homens e a palavra de Deus. Poderá naquela sociedade o homem identificar-se com o espírito de Deus? Por outro lado a referência a Deus faz-se em termos do Antigo Testamento o que, dentro dum pensamento cristão, se poderá relacionar com a dialéctica da revolução gradual do sentido das coisas contraposta às infidelidades do Povo.

 

5 A marcha nupcial

 

Analisando vários traços da problemática da alienação humana, ultrapassando assim a pura temática religiosa para o domínio duma penetração antropológica, o filme de Manuel de Oliveira poderá parecer pessimista - pessimismo que o próprio Oliveira de algum modo reconhece. Porém o último pleno do filme ganha a breve luminosidade da esperança como aliás o final de O Acto da Primavera. Aí havia após a morte de Cristo toda uma série de sequências de guerra, morte, sofrimento, alternadas com a acusação de Cristo ("este o homem acusado, este o homem afligido"), a que se sobrepunha um último plano do florir da Primavera ("e ao terceiro dia ressuscitou"). Em O Passado e o Presente toda a última cena se desenvolve até à identificação do casal com Vanda e Ricardo, sobrepondo-se então um breve plano de um jovem, modelo de uma geração a despertar que no órgão toca a marcha nupcial, que é ampliada pela banda sonora orquestral do filme. Movimento de esperança cujo significado se conjuga com a função de distanciação e crítica satírica que já atribuímos à marcha nupcial. Como que é identificado todo o prisma crítico, ligado desce logo à primeira entrada na casa de Vanda e depois com os pontos mais contraditórios do seu roteiro amoroso, com uma juventude tão longe do universo filmado, como as crianças e os trabalhadores em que o filme repara marginalmente.

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