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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Processo Do Rei - João Mário Grilo (1989)

A ENCENAÇÃO DO VAZIO

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 10, Maio 1990, pgs. 38 e 39 

 

A História já tem sido objecto de diferentes formas de apropriação pelo cinema. Podemos pensar no estilo ficcional do cinema americano, tipo E Tudo o Vento Levou ou Reds, ou nas diferentes adaptações de Shakespeare com Lawrence Olivier ou Orson Welles à cabeça, e naturalmente no realismo didáctico de Rossellini. É evidentemente de Rossellini que se sente mais a influência em O Processo do Rei de João Mário Grilo, e entre outras razões não é irrelevante que o filme aborde um tempo histórico contemporâneo de A Tomada do Poder de Luís XIV.

Talvez com um sentido bem português João Mário Grilo interessou-se pela perda mais que pela tomada do poder.

O centro do filme está em torno de Afonso VI e não de Pedro II. E o que João Mário Grilo é uma radiografia da impotência e não propriamente apenas na sua mais explícita referência sexual.

O Processo do Rei propõe-se-nos como a encenação de um vazio, no sentido de dar corpo a uma ausência. Em primeiro lugar porque essa é a condição do filme histórico. O que existe é um documento, um testemunho. A realidade vivida é um suposto que a ficção fílmica num só aparente registo da verdade. Mas o que se filma é em certa medida a ausência, como Manoel de Oliveira significativamente tem mostrado acima de tudo em Amor de Perdição e Francisca. João Mário Grilo percorre um caminho semelhante ao privilegiar o texto do processo de anulação do casamento de Afonso VI e o seu consequente afastamento do trono. Os depoimentos registados nas actas do processo são recitados não tanto como evidência de uma maquinação contra o rei mas principalmente como limite à reconstituição, ou seja, a uma ficção de presença.

Mas, além disso, a própria figura enigmática de Afonso VI é de um ponto de vista dramático uma ausência, o que evidentemente torna a interpretação de Carlos Daniel, que lhe dá corpo, de uma paradoxal dificuldade. A impotência sexual é aliás por si mesmo a ausência do corpo, e aliás a isso alude nos diálogos, na referência de que Afonso VI não frequenta o quarto da rainha. Mas também a questão do poder do trono tem contornos semelhantes. Afonso VI não ocupa o lugar e o conde de Castelho Melhor funciona como o administrador da ausência do rei, desviado em comportamentos marginais e nororiamente deficiente a nível físico e eventualmente mental. O contexto histórico em que tudo se passa é o de uma dinastia ainda jovem, fundada por João IV no termo da dominação da dominação dos Filipes de Espanha e o vazio do poder ameaça a ainda mal refeita identidade nacional, tanto mais que os combates de fronteira com a Espanha e os interesses diplomáticos da França e da Inglaterra questionam, então como agora, o espaço da autonomia portuguesa.

Uma das chaves de leitura do filme é, sem dúvida, o comentário do rei à tapeçaria que figura o rei Afonso V em batalha contra os mouros: um rei é menos vulnerável ao inimigo na medida em que se oculta, em que não é visto. Este parece ser o programa de Afonso VI, não já face ao inimigo mas na própria corte, num comportamento paranóide extremamente sensível aos olhares, apenas ganhando a sua liberdade na noite e no disfarce mas mesmo assim visionando inimigos que ataca e identifica com os personagens que o rodeiam (logo no início do filme numa das suas rondas nocturnas Afonso VI simula atacar o próprio Castelo Melhor).

O Processo do Rei mostra que o poder é uma encenação complexa onde o espectáculo pode invadir o íntimo, onde o trono se prolonga na cama. Essa intimidade oferecida à nação, no desejo de um herdeiro que o não é apenas do rei, justifica talvez toda a vulnerabilidade ao olhar e até a própria impotência. Mais que um corpo ausente é um corpo roubado, partilhado, quase como poderia ser entendido numa vivência psicótica. E naturalmente não será alheia à própria formulação do filme a concepção psicanalítica da ligação entre paranóia e homossexualidade (note-se desde a adolescência a partilha das aventuras sexuais com o irmão Pedro).

A ausência do rei é elaborada de uma forma expressiva por João Mário Grilo na própria ausência de dramatização, deslocando-se o fascínio que o filme pode exercer da representação para o pictórico. E o excelente trabalho de fotografia (Eduardo Serra) e de cenografia (Maria José Branco) vai inteligentemente valorizar equivalências com a pintura da época. Mas de certa maneira também é aí que radica a principal limitação do filme. Valorizando a pesquisa da verdade, O Processo do Rei lança mais questões que propostas, não assumindo nenhum dos pontos de vista que alguns dos elementos mostrados poderiam sustentar, nem estabelecendo hipóteses para além do que esta página estranha da História de Portugal imediatamente sugere.

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