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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Rapto - Marco Bellocchio

A SALVAÇÃO DAS ALMAS

António Roma Torres

 

A um dado momento do filme o pequeno Edgardo Mortara (Enea Sala) está a jogar às escondidas com outras crianças e momentaneamente esconde-se sob a capa do Papa Pio IX (Paolo Pierobon), seu "protector", como fizera antes com a sua mãe, Marianna Padovani Mortara (Barbara Ronchi), no momento em que o poder dos  Estados Pontifícios que o pontífice exercia, o fora buscar a casa do seu pai, o comerciante judeu Salomone Mortara (Fausto Ruso Alesi) em Bolonha, por determinação do padre Pier Gaetano Feletti (Fabrizio Gifuni), inquisidor dominicano do Santo Ofício, porque se apurara que a criança, nascida numa família judaica, fora baptizada por uma criada, segundo as normas da Igreja Católica, num período em que estava num estado febril de algum risco para a sua vida e portanto preenchia as condições de um baptismo in extremis nos ritos do sacramento. Subitamente o rapaz liberta-se e corre para o lugar onde deve dizer "salvo todos".

A lógica do baptismo in extremis é também a da salvação da alma, permitindo à criança o acesso ao céu que na sua ausência lhe estaria impedido mesmo não atingida a idade da razão e, portanto, na ausência de pecados mortais próprios.

O Rapto, de Marco Bellocchio, aborda um dos episódios mais lamentáveis da história da Igreja Católica em tempos significativos da luta contra o modernismo. O papado de Pio IX entre 1846 e 1878, foi o mais longo de sempre na história da Igreja, excepção feita ao inicial de São Pedro, e começou numa eleição em conclave como liberal para se tornar o acérrimo defensor das posições conservadoras da Igreja num mundo ameaçado quiçá por novas heresias, mas principalmente opondo-se a uma laicização irreversível em que muitas correntes de pensamento se foram emancipando da mundividência geral até aí religiosa. Se a fé cristã poderia sobreviver e dar luta a todas as ameaças, o que levou à sua beatificação por João Paulo II (mas também João XXIII se lhe referira com veneração), a Igreja teve em Pio IX um papa de combate, mesmo se o poder temporal do papa foi completamente reduzido aos seus limites territoriais do Vaticano actual, ratificados apenas em 1929 pelo Tratado de Latrão entre Pio XI e Mussolini. O entendimento da Igreja à época centrava-se na importância do dogma, como verdade estabelecida pela fé, objecto de uma definição que o próprio ensino da catequese enfatizava como o filme significativamente mostra e foram solenemente expressos na imaculada conceição (1851) e na infalibilidade papal (1870), durante o papado de Pio IX, mas paradoxalmente não isentos de polémica.

O filme dá uma imagem sólida dos antecedentes históricos e políticos da Itália actual, depois de uma unificação tardia face a outros estados europeus, na linha de Visconti (O Leopardo) ou Bertolucci (1900). E Bellocchio sabe conjugar habilmente o fresco social e a reconstituição rigorosa, com a tentativa de perscrutar as angústias e incertezas da consciência individual.

Aos 84 anos Bellocchio declarou em entrevistas não ter pretendido fazer um libelo acusatório da posição da Igreja Católica na história de um tumultuoso século XIX e o filme tem até momentos de uma suave ironia ou de uma subjectivação onírica, por vezes numa coreografia que substitui com imaginação a continuidade narrativa.

Pio IX é retratado de uma forma dessacralizante em relação à aparência da época (há um momento em que tem um pesadelo vendo-se a ser circuncidado por um rabino ou noutra cena refere-se o dado histórico de padecer de epilepsia com uma perda de consciência numa escadaria) mas a combatividade que impõe ao que entende como uma missão a que não pode fugir expressa-se num outro momento de manifesta solidão estendendo a imprensa internacional sobre a secretária e olhando as caricaturas à época publicadas, ironicamente animadas.

Por outro lado, o papa entra em confronto com a comunidade judaica que no início aliviara do rigor dos guetos a que estava confinada como depois lhes recorda ao impor-lhe desajustados rituais de subserviência. Aliás são também visíveis as diferentes atitudes na comunidade dos judeus, entre a oposição aberta ou a sobrevivência complacente ao domínio católico, expressa também na revolta e indignação da mãe de Edgardo, apelando à emoção, ao contrário do pai, com uma maior contenção e apelo à autodisciplina que na época se impunha à educação particularmente dos rapazes.

Até certo ponto surpreende a forma como Bellocchio evita o panfleto e mesmo retrata a evolução de Edgardo que acaba por aderir interiormente à Igreja Católica que lhe fizera uma tamanha violência, hoje difícil de aceitar, a ponto de se tornar padre e tentar converter a própria mãe à hora da morte. Aliás a própria tentativa de conversão da família judaica parece nortear também os padres que na infância se ocuparam da sua educação, como de outros rapazes mais voluntariamente entregues ao catecumenado no Vaticano. Há, no entanto, dois momentos no filme em que a adesão de Edgardo à Igreja que o adoptou de forma tão abusiva parece vacilar, primeiro ainda na infância no encontro mais emotivo com a mãe, e depois, já jovem adulto na carreira eclesiástica, na perturbação de Edgardo (Leonardo Maltese) durante os tumultos entre católicos e os maçónicos que o papa anatematizara, durante a trasladação do corpo de Pio IX, três anos após a sua morte e segundo a sua vontade, de São Pedro para a basílica de São Lourenço Extramuros.

Propositadamente Bellocchio parece ter querido evitar ver os confrontos de há mais de um século com os olhos de hoje para o que talvez tenha contribuído a sua própria vivência pessoal, oriundo de uma família católica e aderindo ao combate político dos maoístas radicalizados, nos anos sessenta em que ele irrompeu com grande vitalidade no cinema italiano então numa terceira geração, depois do neo-realismo de Visconti e Rossellini, e de um cinema autoral de Fellini e Antonioni, com o seu émulo mais directo, mas ligado ao PCI, Bernardo Bertolucci, e também na mesma área, Pier Paolo Pasolini, e ainda um cinema político nos modelos do cinema de género com que a Cinecittà tentaria competir com Hollywood pela mão de Elio Petri, Francesco Rosi ou Sergio Leone. O francês Jean A. Gili, credenciado especialista estrangeiro no cinema transalpino, definiria o seu filme inicial De Punhos nos Bolsos (1965) como "drama exasperado de enclausuramento e ataque violento à instituição familiar de um cineasta talentoso que sabe misturar a ternura poética e a violência blasfematória" (Le Cinèma Italien, ed. Le Martinière, 2016, pg. 225) e o Bellocchio de hoje apresenta-se visivelmente mais amadurecido, mas sem ter perdido nenhuma dessas qualidades. Aliás o anterior Marx Pode Esperar (2021), menos ficcional e mais um documentário sobre a sua família a contas com o suicídio do seu irmão gémeo num tempo em que significativamente A China é Vizinha (1967), mostra uma propensão de Bellocchio para a reflexão biográfica e para os dilemas de fé entre a religião e a política, a submissão e a revolta, que o levou a confessar-se a Jorge Leitão Ramos no Expresso (17/4/2024) sobre a sua própria trajectória nestes termos: "Sofri violência e cometi violência. E durante toda a minha longa vida tentei interpretá-la, compreendê-la, representá-la. Eu pertenço ao lugar da não-violência, mas conheci-a. Desde que me lembro, nunca sofri violência física, os meus pais nunca me bateram em miúdo. A violência que conheci foi institucional, ideológica: a educação católica continha, naquela época, uma violência que se exprimia na falsidade, na hipocrisia, no conformismo, na obediência, no medo do inferno, da culpa, das escolhas - a que reagi aderindo, mais tarde, por exemplo, a movimentos revolucionários".

Inteligentemente O Rapto olha para a violência de uma forma não violenta, recusando a falsa psicologia dos lugares-comuns e da fácil indignação, mas interrogando o coração dos homens mesmo quando a sua fé e o seu zelo os podem levar por caminhos difíceis de compreender. As guerras religiosas que ainda continuam a atormentar-nos mostram como a salvação das almas pode constituir paradoxalmente uma perdição para os corpos e a própria humanidade

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