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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Rio Do Ouro - Paulo Rocha (1998)

Paulo Rocha tem uma filmografia escassa se considerarmos que o seu primeiro filme, "Verdes anos", importante obra do que então se chamou o novo cinema português, data de 1963. Nesses anos sessenta Paulo Rocha dirigiu também, ainda com Cunha Telles como produtor, "Mudar de vida", sendo talvez a mais significativa figura dessa primeira vaga, que no entanto não assinou nenhum filme de longa-metragagem até "A ilha dos amores" em 1982, tendo por assim dizer passado ao lado da segunda vaga do cinema novo, os chamados "anos Gulbenkian", imediatamente antes do 25 de Abril. Depois de "A ilha dos amores" Paulo Rocha dirigiu apenas "O desejado" (1986), não contando documentários, filmes curtos e trabalhos em vídeo, confirmando-se como um cineasta que alterna os períodos criativos com os longos intervalos.

"O rio do ouro" surge agora como uma obra de grande fôlego que definitivamente impõe Paulo Rocha como o cineasta português mais talentoso depois de Manoel de Oliveira, e curiosamente é uma espécie de síntese das linhas de força do seu cinema anterior, com a perturbação dos amores trágicos de "Verdes anos" e "A ilha dos amores" e o sentido de comunhão cósmica de "Mudar de vida" e "O desejado".

Evocando as canções que os cegos vendiam nas estações de comboios umas décadas atrás, com uma significativa participação de José Mário Branco, autor da música do filme, no excelente cenário da estação de S. Bento - "o sangue manda no gesto, o ouro manda na gente" - Paulo Rocha conta "a história de um grande e horrível crime", adivinhando-se desde o princípio um curso predestinado, como as águas do rio, onde uma força misteriosa parece conduzir os comportamentos humanos até ao extremo.

As imagens de "O rio do ouro", com inspirada direcção de fotografia de Elso Roque, são de uma surpreendente beleza, e ganham no trabalho de Paulo Rocha uma dimensão dramática que dá à história um cunho que ultrapassa o campo da abordagem pessoal para atender à própria natureza, significativamente presente na misteriosa voz das flores nas primeiras cenas do filme ou na desrealização do final em que a personagem de Carolina (Isabel Ruth) e a varanda sobrevoam o rio Douro.

Sem a directa associação a uma dimensão teatral e à cultura do Japão, país onde Paulo Rocha viveu longos anos na preparação de "A ilha dos amores" sobre um certo culto da morte através do personagem de Wenceslau de Morais e de cuja literatura milenar "O desejado" embora numa ficção da política lisboeta colhia também inspiração, Paulo Rocha continua no entanto em "O rio do ouro" o seu trajecto numa pesquisa de uma ficção cinematográfica que se distancia da herança do romantismo e de uma narrativa bastante modelada pela explicação psicológica dos personagens.

Em "O rio do ouro" os personagens vivem um mundo de pulsões que em certo sentido os assemelham nas suas motivações incontroláveis, apenas se distinguindo a posição de cada um no desfecho final. Não há psicologia que os torne compreensíveis mas António (Lima Duarte) e Carolina (Isabel Ruth), como José (João Cardoso) e Melita (Joana Bárcia), nunca se tornam estranhos de um ponto de vista da natureza humana que os irmana num desenho quase simétrico.

O domínio em que se movem é o do mito para que apontam aliás essas canções populares de crimes de amor.

E o que Paulo Rocha consegue é que a câmara capte essa realidade primitiva, inserindo o homem numa natureza agreste mas de uma grande beleza, talvez melhor ainda de uma grande nobreza, no que naturalmente é muito ajudado pela fotografia de Elso Roque, pelos cenários de Alberto Péssimo e Jorge Gonçalves, e pelas interpretações de todos os actores, onde João Cardoso merece um destaque especial por defender o seu personagem ao lado do grande actor brasileiro Lima Duarte, a quem o argumento não dá talvez a possibilidade de uma interpretação especialmente marcante, e da singular presença de Isabel Ruth, uma actriz cuja carreira cinematográfica se desenhou com grande vigor no cinema português dos anos sessenta.

O rio no filme de Paulo Rocha mais do que um cenário constitui-se num elemento dramático, a que se associa o comboio, e significativamente os túneis, ligados ambos por uma ideia de trajecto que aponta para o mar ou para a cidade. No filme as viagens ao Porto, primeiro no comboio, onde se trava conhecimento com o comerciante de ouros e as suas premonições decifradas na palma das mãos, depois para ver a Foz numa imagem quase crepuscular, anunciam o final dramático, não apenas do crime sangrento mas da junção dos amantes no fundo das águas do rio.

Há qualquer coisa de pulsional que se transmite neste caminho para a foz que torna "O rio de ouro" um filme em certo sentido mágico. E a noite de S. João à beira rio, convocando as cantigas populares no subtil jogo dos diferentes entendimentos das suas letras aparentemente inocentes, lança da melhor maneira a resolução dramática do filme, que evoca também a "Francisca" de Manoel de Oliveira e Agustina Bessa Luís, num folhetim radiofónico escutado no espaço limitado, e significativamente entre o público e o privado, de um tasco de aldeia, recriando um magnífico ambiente, onde uma vez mais a luz, a imagem e os cenários se conjugam de forma bastante expressiva.

Mas o que torna "O rio do ouro" um filme singular é a sua dimensão poética, onde as sequências são trabalhadas de uma forma milimétrica, valorizando os ângulos e os movimentos de câmara num constante sentido da criação que, tal como no cinema de Manoel de Oliveira, recusa sistematicamente as soluções mais vulgares. E a força do cinema de Paulo Rocha ganha uma significativa dimensão no uso dos elementos da natureza,e de alguma forma na herança do cinema mudo russo que já era visível em muitas das cenas de "Mudar de vida", cuja cosmovisão de certa maneira "O rio do ouro", liberto de uma mais elaborada estrutura dramática, retoma.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias

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