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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Sapato De Cetim - Manoel De Oliveira (1985)

EMPREENDIMENTO CULTURAL

 

Em sessão especial promovida pelo autor e pelo cinema Lumiére, cujo acolhimento ao cinema português continua a constituir um exemplo digno de realce LE SOULIER DE SATIN (O Sapato de Cetim), de Manoel de Oliveira pôde ser visto pela primeira vez no Porto, cidade de onde é natural o cineasta. O filme fora exibido nos festivais de Cannes e de Veneza em 1985, e em Portugal tivera uma exibição no Festival da Figueira da Foz além de duas sessões na Cinemateca Portuguesa em Lisboa. Baseado num longo texto dramático de Paul Claudel, o filme prolonga-se por cerca de sete horas, divididas por Manoel de Oliveira em três partes, ganhando a última parte correspondente à quarta jornada da estrutura original da peça de Claudel e intitulada «Sob o vento das ilhas Baleares» uma certa autonomia que permite a exibição em separado.

O filme foi apresentado no Porto em três sessões no mesmo dia. O texto complexo declamado em francês e ainda na ausência de legendas em português torna, naturalmente, difícil a apreciação em função apenas de uma primeira oportunidade de visão. No entanto, mesmo assim, é de realçar que o filme impressiona de imediato pela sua postura cultural e, de certa maneira ascética. LE SOULIER DE SATIN realmente é uma obra de cultura, não sendo de estranhar o apoio que obteve dos ministérios da Cultura de Portugal e da França (ao tempo respectivamente dos ministros Coimbra Martins e Jack Lang).

Poeta e dramaturgo francês, diplomata também (estava no Japão quando concluiu a peça), Paul Claudel é um autor classicamente definido como católico. LE SOULIER DE SATIN é simultaneamente uma história de amor e uma visão do mundo e, necessariamente, ambos os aspectos exerceram uma particular atracção sobre Manoel de Oliveira. A história de amor insere-se na linha da tetralogia de "amores funestos" constituída por O Passado e o Presente, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca, Claudel definia-a como "uma lenda chinesa de dois amantes que cada ano após longas peregrinações, chegam a avistar-se sem se poderem encontrar de um e do outro lado da Via Láctea". É evidente a linha de continuidade temática com a obra de Oliveira. Mas, por outro lado, o tratamento menos intimista, menos psicológica a uma escala universal, mesmo cósmica que poderá, em certa medida, traduzir a viragem da filmografia de Manoel de Oliveira ultrapassando completamente as fronteiras portuguesas, mas, evidentemente, sem esquecer as suas raízes. Claudel, aliás, nas rubricas iniciais da peça deixa claro que "a cena deste drama é o Mundo" e talvez, se algum filme anterior de Oliveira se deva invocar a visão desta sua obra, ele será certamente O Acto da Primavera», inclusivamente pela própria posição exterior de Oliveira face ao texto e à sua própria peculiar estrutura dramática.

A peça de Claudel nunca havia sido posta em cena na sua versão integral. Jean-Louis Barrault encenou em 1943 uma versão reduzida e arranjada das quatro jornadas, e em 1972 dirigiu uma encenação integral da quarta jornada "Sob o vento das ilhas Baleares". O próprio Claudel pareceria mesmo não acreditar muito na hipótese de uma representação integral ao iniciar as indicações de cena escrevendo que "como apesar de tudo não há impossibilidade completa que a peça seja representada um dia ou outro, daqui a dez ou vinte anos, totalmente ou em parte, é de começar por algumas direcções cénicas". Oliveira agora faz, de certa maneira, um "tour de force" que nos procura devolver um Claudel completo na sua própria desmesura.

Talvez se possa dizer que onde a leitura de Oliveira aparentemente diverge mais da proposta de Claudel e precisamente no carácter acabado, perfeccionista, de grande beleza plástica, que Oliveira dá a cada um dos quadros, por vezes quase como se se tratasse de uma obra pictórica. A posição muitas vezes estática da câmara e dos actores, os planos de longuíssima duração, o cuidado evidentemente posto na encenação, nos cenários, no guarda-roupa, na iluminação, na composição de imagem, e a excelente direcção de fotografia de Elso Roque dão ao filme uma força verdadeiramente única. Em todo o caso, essa opção contrasta com as indicações de Claudel que imaginava a peça representada numa Terça-Feira Gorda e escrevia que "é preciso que tudo tenha um ar provlsório, em marcha, incoerente, improvisado no entusiasmo" uma vez que "a ordem é o prazer da razão, mas a desordem é a delícia da imaginação". 

Realmente Manoel de Oliveira constrói o filme a partir de um ponto de observação de que raramente se afasta, e que torna muito visível a posição da câmara. Não tendo podido assistir às imagens iniciais, pude, no entanto, colher informações de que o filme se inicia numa própria sala de espectáculos com a cena teatral em evidência (talvez em paralelo com o início e final de Benilde ou a Virgem Mãe, mas então significativamente esse percurso era feito dos bastidores não, como agora, a partir da plateia). Em LE SOULIER DE SATIN não há praticamente qualquer efeito de contracampo, não se misturando a posição da câmara com o espaço que os actores ocupam. Há quando muito e raramente, uma suave panorâmica ou um "travelling" óptico mas sempre como se houvesse uma linha de demarcação que separe o espaço da câmara do da cena, frequentemente com os personagens que dialogam olhando na mesma direcção. Uma excepção é talvez a cena da  Corte  perante  a  qual  se apresenta Don Rodrigo (Luís  Miguel  Cintra) em que, realmente, há uma certa estrutura de contracampo. Será curioso comparar as soluções de LE SOULIER DE SATIN com as de outros filmes de Oliveira, como os amplos movimentos de câmara de O Passado e o Presente, com o diálogo em "off", ou a câmara centrada sobre os personagens que ouvem em Benilde, novamente com um efeito "off" dos personagens que falam, ou mesmo o invulgar campo contracampo, repetido de certa maneira, decomposto em duas cenas na capital sequência necrópsica sobre o coração em Francisca. Há, sem dúvida, uma coerência e, ao mesmo tempo, uma pesquisa de novos desenvolvimentos que torna a estética de Manoel de Oliveira num vasto e rico campo que, em certa medida, está ainda por estudar.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 10/1/87

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