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Foto do escritorAntónio Roma Torres

O Último Mergulho - João César Monteiro (1992)

A MUDA ESPERANÇA

 

Havia uma grande curiosidade em torno deste filme de João César Monteiro. Recordações da Casa Amarela marcara um ponto de maturidade na obra do autor. Se quisermos era um filme perfeito numa filmografia até aí caracterizada pela irregularidade onde parecia    prometer-se mais do que aquilo que era concretizado pressentindo-se, no entanto, um autor capaz de se transcender no dia em que se levasse mais a sério. Os próprios títulos indiciavam a procura de um caminho: Quem Espera por Sapatos de Defunto, Fragmentos de um Filme Esmola, Que Farei com Esta Espada? Veredas e mesmo À Flor do Mar. Em Recordações da Casa Amarela o compromisso foi ao ponto de o próprio César Monteiro interpretar o papel principal e o filme não é dissociável da sua surpreendente fotogenia interior, do cunho poético que a sua presença dá ao filme.

Como continuaria, pois, João César Monteiro depois de Recordações da Casa Amarela? O Último Mergulho é e não é uma resposta. Em primeiro lugar pelas características da produção, o filme produzido por Paulo Branco faz parte de um conjunto para a Televisão sob o mote de Os Quatro Elementos, cabendo a João César Monteiro A Água enquanto os outros filmes são assinados por João Botelho, Joaquim Pinto e João Mário Grilo. Aparentemente é uma encomenda o que retira alguma coisa à continuidade do percurso do autor. Depois João César Monteiro revela logo no genérico que se trata do esboço dum filme, o que reenvia para as características fragmentárias dos seus filmes anteriores a Recordações da Casa Amarela.

Devemos então analisar O Último Mergulho como um filme (que na realidade é) ou como um esboço (que explicitamente declara ser)?  Note-se que João César Monteiro neste período anunciou um filme com o mesmo personagem de João de Deus de Recordações da Casa Amarela, mas em que o mergulho suicidário seria no Sena e não no Tejo e parece dividir-se no presente entre um outro filme que protagonizaria intitulado Valha-me Deus ou A comédia de Deus e um  projecto em França a que se faz alusão no último número dos Cahiers du Cinéma de homenagem a Serge Daney cujo título seria La Passion de  John  Wayne não se sabe se ainda ligado ao hipotético mergulho no Sena.

Consideremos então O Último Mergulho um esboço a que talvez a obra futura empresta alguma iluminação e anotemos o paradoxo que parece de certa forma ter guiado o filme no titulo aparentemente definitivo.

O filme de João César Monteiro polariza-se em alguns opostos relativamente lineares. De um lado o mergulho suicida nas águas do rio que acabará por protagonizar Elói (Canto e Castro). Do outro lado o mergulho vital nas ruas festivas de Lisboa onde literalmente Samuel (Dinis Neto Jorge) vai encontrar a Esperança (Fabienne Babe). De um lado o discurso sobre saturado de obscenidades em ruptura com o carácter doméstico e pacífico do filme para Televisão (no monólogo em off da mulher doente de Elói onde o verbal acompanha o escatológico ligado à decomposição do corpo pela doença e aos dejectos). Do outro lado, o silêncio de uma personagem muda, de uma Esperança que passa pela recuperação do amor através do corpo mais do que pela palavra (e quando acede à palavra á através de um texto de um outro mundo de Hölderlin e do imaginário grego). De um lado a cabeça de João de Deus (Baptista) visto de forma fugidia na noite lisboeta e que não chega ao sacrifício que apesar de tudo dava sentido a Recordações da Casa Amarela. Do outro lado os véus de Salomé em que a nudez afinal (é só) um passo (também furtivo) da coreografia.

Havia com certeza um material ficcional muito rico no esboço de João César Monteiro. Mas isso não deve iludir o debate estético que não pode ser reduzido como acontece de vez em quando tratando-se do cinema português a um conceito de cinema de autor onde a postura do autor enquanto personagem se sobreponha a obra. Ora o que acontece é que O Último Mergulho parece ser um retrocesso na obra de João César Monteiro numa certa tendência para a facilidade e para a autocomplacência que junta o inspirado e o desinteressante como se da mesma coisa se tratasse e se resolvesse pela simples colagem o que necessitaria de uma outra articulação.

Assim O Último Mergulho é um filme que se alonga sem justificação no deambular por Lisboa onde se afigura uma moleza na encenação que deixa perdidos os personagens em excessivos momentos sem significado com os intérpretes pouco à vontade sem saberem encontrar a presença justificadora de que João César Monteiro é exemplo em Recordações da Casa Amarela. É facto que no cinema de César Monteiro houve sempre um lado documental, mas a questão é que em O Último Mergulho essas cenas resultam soltas, mal articuladas na ficção ou no registo expressivo do filme. Até porque o filme aposta em sequências duras como são as duas danças de Salomé espécie de recitativos corporais (a repetição em silêncio evocando idêntico método de O Meu Caso de Manoel de Oliveira) ou os textos lidos de Hyperion de Hölderlin equivalentes ao nível da palavra no final mesmo em ecrã negro ou o travelling sob os girassóis (inspirado talvez mas significativamente diferente do travelling de Jaime de António Reis, filme e cineasta que César Monteiro preza e que talvez no ano em que Antonio Reis morreu tenha regressado ao seu mundo de referencias). Falta porém, a unidade que Recordações da Casa Amarela conseguiu ter, digerindo, assimilando, tornando inequivocamente suas as referências. Há um Iado de ocultações e revelações, uma espécie de dança dos sete véus que habita o cinema de João César Monteiro. Talvez o filme se justifique como esboço, mas quem sabe se não gostaríamos mais do filme onde entre o desespero amargo e a inocência se encontrasse o fio de Ariana nos labirintos da vulgaridade ou da erudição onde por vezes o filme mergulha e quase se afunda.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, in 19/9/1992

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