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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Os Canibais - Manoel De Oliveira (1988)

COMO UM BAILE DE MÁSCARAS

 

O filme começa por um desfile. Carros luxuosos que se detêm face a um portão. Como no início de O Passado e o Presente. Personagens que vão saindo e sucessivamente entram no palacete perante os aplausos do povo contido por uma barreira.  Adivinha-se a separação entre actores e espectadores que se estabelecia em O Passado e o Presente» e o paralelo confirmar-se-á adiante quando os criados encontram Margarida morta: eles falam enquanto os aristocratas cantam (em O Passado e o Presente os criados olhavam sem falar mas constituíam uma presença que pontuava habilmente a comédia escrita por Vicente Sanches).

Desde as primeiras cenas, os dados estão lançados A representação vai começar e curiosamente é aí que surge a musica.

OS CANIBAIS é uma ópera que Manoel de Oliveira encomendou expressamente ao seu habitual colaborador musical João Paes. Trata-se de uma adaptação de um conto fantástico de Álvaro do Carvalhal, relativamente desconhecido, apesar de ter sido publicado há poucos anos, pelas edições Rolim. Manoel de Oliveira, por uma vez, não segue o texto com a fidelidade de outras adaptações suas, embora siga toda a estrutura narrativa do conto. A adaptação e particularmente os diálogos foram escritos, aliás, de uma forma elegante, com uma qualidade literária na que ultrapassa o texto original, relativamente desequilibrado

A opção de adaptar OS CANIBAIS como uma ópera, reforçando a distanciação que já existia  no texto através de sucessivos comentários e até hipóteses alternativas  sobre  a  forma  de  contar  (na introdução ao texto, Manuel João Gomes destaca em título “Álvaro do Carvalhal,  o  narrador que ria por detrás dos  bastidores”),  é também coerente com o uso da palavra e  das  vozes que Manoel de Oliveira vem fazendo nos seus filmes desde O Acto da Primavera nesse aspecto paradigmático, pela musicalidade da recitação do próprio auto da Paixão, até ao anterior O Meu Caso, em que uma das “repetições” da peça de José Régio é feita numa língua ininteligível que subverte e recria o significado das palavras e de uma forma geral do dito (ou como notámos então da possibilidade de dizer). Este aspecto da obra de Manoel de Oliveira nem sempre tem sido bem compreendido ao confrontar a representação nos seus filmes com os critérios de naturalidade comuns. Aliás, a fidelidade ao texto de Camilo em Amor de Perdição partia já de uma espécie de leitura, de recitação da obra que estaria bem perto das características desse romance de Camilo.

Cabe aqui dizer que precisamente um dos pontos fortes de OS CANIBAIS é a qualidade dos desempenhos.  À excepção do narrador (Oliveira Lopes), e de Urbano Solar, o pai de Margarida (Joel Costa) todos os actores são dobrados por cantores líricos de tal forma que um empresta o corpo, o gesto, a atitude e outro a voz, a tonalidade, a alma, e essa dualidade não deixa de ser interessante nas próprias reflexões apontadas em filmes anteriores de Manoel de Oliveira e agora prolongadas em OS CANIBAIS. Luís Miguel Cintra (visconde de Aveleda, voz de Vaz de Carvalho), Leonor Silveira (Margarida, voz de Filomena Amaro) e Diogo Dória (dom João, voz de Carlos Guilherme) conseguem desempenhos notáveis, sendo de realçar mesmo uma boa adaptação ao canto e às características da dobragem. Cintra e Dória são, aliás, actores com uma grande experiência em vários filmes portugueses e nomeadamente nos filmes de Manoel de Oliveira (o primeiro em Le Soulier du Satin e O Meu Caso e o segundo em Francisca), mas a estreante Leonor Silveira merece todos os aplausos pois conseguiu talvez a melhor identificação çom o retrato feminino, tal como Manoel de Oliveira o vem esboçando já desde os filmes anteriores.

A estranha história de OS CANIBAIS interessou Oliveira provavelmente pela sua   proximidade com temas já tratados em filmes anteriores. O filme é surpreendente pela sua inovação, pela imaginação de que Manoel de Oliveira constantemente faz uso, mas, é preciso dizê-lo, é, ao mesmo tempo, de uma coerência notável com toda a  sua  obra  anterior.  Do mesmo modo, temos em OS CANIBAIS uma históna de amores infelizes, de   núpcias não consumadas como em Benilde, Amor de Perdição ou Francisca.

Aliás, de Francisca e concretamente do   notável campo-contracampo das reflexões de José Augusto sobre o coração morto de Francisca parece surgir uma vez mais a inspiração para algumas das cenas fundamentais de OS CANIBAIS. Vejamos  o  visconde   de   Aveleda   apresenta-se  como  um  coração que  ama  num  corpo morto (“Se eu fosse um cadáver frio e inerte,  animado por qualquer           engenhoso mecanismo, embora me pulsasse no corpo morto um  coração com vida, poderia V. Exª abraçar-me sem repugnância?”) e essa  revelação,  ainda  relativamente oculta até ás cenas dramáticas da noite de núpcias no finai  da  primeira  parte,  é  acompanhada  por  um  contracampo  invulgar  que  contraria as regras  comuns,  já  que  Margarida  se  desloca de um lado para o  outro  do  visconde,  que  vemos de costas (tornaria longa a  crónica  percorrer agora a experiência de  Oliveira  no  uso criativo   do   contracampo,   mas   anotemos apenas Benilde e  Le  Soulier  du  Satin»  como  exemplos  marcantes).  A associação com a referente cena de Francisca é inevitável e em qualquer caso é da alma que se trata como verdadeira sede que se não esgota nas aparências do corpo       (e  no  limite  na  ausência  do  corpo  simbolizada    em OS CANIBAIS na estátua, mas como diz  o  diálogo “na lepra, no cancro, na gangrena”,  em  suma  uma  doença,  no  envelhecimento,  na  morte). Daí que este “leito nupcial no cemitério” recorda também aquela cena do final de Amor de Perdição em que Mariana se lança ao mar e se afoga abraçando o cadáver de Simão. Como escreve Álvaro do Carvalhal, “é bem certo que as dores da alma nem deixam perceber as da matéria”, e é dessas obras da alma que o cinema do Manoel de Oliveira trata de uma forma brilhante.

Mas não se pense que OS CANIBAIS é um filme melancólico, soturno, de amores   fúnebres. Se ao mesmo tempo há um mistério assustador e quase impenetrável, a própria resolução dramática que justifica o título ao filme dá-lhe um sentido de humor de certa maneira cruel   mas que deixa lugar à sobrevivência e a uma saudável relatividade no que respeita ao convívio com as aparências (e a pirueta do excelente final do filme é também isso e aí se aproxima da mensagem de felicidade apesar de tudo do final de  O Meu Caso). Aliás, uma das características de OS CANIBAIS é a da habilidade do seu desenvolvimento narrativo, numa capacidade extrema de surpreender, de violar com elegância a própria expectativa e lógica interna da narrativa, como escreve Carvalhal, “à parte o ódio ao ramerrão clássico e a louvável ambição de conquistar direitos a original, e não sei que mais, sinto o meu fraco por fechar um conto num lance desastrado, assombroso, nunca visto”.  Manoel  de  Oliveira, nesse aspecto, fiel ao autor que escolheu  adaptar, tem assim talvez um  mote  inspirador  ao seu próprio sentido de         humor e estimulante vitalidade  E, como “quem     conta um conto acrescenta lhe um ponto”, a cena final em que o narrador violinista se volatiliza, como que sinalizando o final da  representação,  é  ainda  um  bailado agora  definitivamente  festivo  numa  espécie de espaço virtual  que  a  cena  não  contempla e onde não há juízos definitivos e se reencontram na mesma dança  os  que,  minutos  antes,  eram tão claramente  marcados  como  bons  ou maus. O bem e o mal coabitam nos corpos e nas almas que Manoel de  Oliveira  tão  bem  soube filmar.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/11/1988

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