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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Os Cornos De Cronos - José Fonseca E Costa (1991)

NARCISO DENTRO DO FRIGORÍFICO

 

Os Cornos de Cronos, José Fonseca e Costa, Portugal-Brasil, 1991

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 13

 

A obra de José Fonseca e Costa sempre questionou com alguma eficácia os papéis masculinos e femininos na sociedade portuguesa. Curiosamente Women in film, an international guide de Annette Kuhn e Susannah Badstone (ed. Ballantine Books, 1990), que compreensivelmente dá mais atenção às cineastas do sexo feminino, atribui a Fonseca e Costa uma das raras entradas referentes ao cinema português dizendo que ele «rejeita o tempo lento e nostálgico privilegiado pelos realizadores portugueses, optando por um humor seco que provou ser muito popular; o sexo, o exército, a família e o casamento são os alvos preferidos; os seus caracteres femininos não são vítimas passivas mas exploradoras espirituosas do sistema, que tornam visíveis as fortes ligações entre patriarcado e fascismo». Será interessante ler Os Cornos de Cronos (que Fonseca e Costa quis chamar Coração partido no que foi impedido, talvez sem grande legitimidade, pelo autor do romance original, Américo Guerreiro de Sousa) não tanto à luz da temática do envelhecimento e da decadência do corpo, que o título evidencia, mas precisamente na interrogação de um certo machismo lusitano, «marialva», para recordar Cardoso Pires que Fonseca e Costa várias vezes pretendeu adaptar até BALADA DA PRAIA DOS CÃES, finalmente ameaçado não pelo tempo biológico mas principalmente pelo tempo histórico, caracterizado por evidentes mudanças de valores.

 

Alexandre (Carlos Vereza) surge sem dúvida num certo conflito com a idade, que se afigura, no entanto, complexo, já que ora se assume num papel paternal em relação a Ana Sofia (Inês de Medeiros), ora se caracteriza numa espécie de segunda adolescência («it's springtime again» como diz a publicidade da moto). Repare-se que a diferença de idades no par amoroso era já objecto de atenção em BALADA DA PRAIA DOS CÃES e, principalmente, A MULHER DO PRÓXIMO. OS CORNOS DE CRONOS de certa maneira prolonga uma contradição fundamental entre o amor e a idade, e por outro lado entre o amor por alguém e o amor próprio. O tema do narcisismo está presente no espelho como ponto fulcral do desenlace dramático no baile, com um consequente envelhecimento acentuado, que reactualiza, através do amigo, o tema da morte logo exposto nas imagens iniciais. A relação entre Alexandre e Ana Sofia parece cruzar-se com os estereótipos da protecção paternal ou maternal a resvalar para o território do simbólico incestuoso e a leitura de Fonseca e Costa sobre o romance de Guerreiro de Sousa, sendo sempre fiel, parece ampliar-Ihe o sentido particularmente na cena final em que Alexandre se fecha no frigorífico, como uma espécie de congelação do tempo, miticamente ligada a um futuro para lá do limite da morte biológica, mas simultaneamente numa posição uterina, de alguma forma como imagem duma perda inicial, sem dúvida narcísica mas talvez mais ligada ao nascimento do que ao próprio processo de envelhecimento. É neste sentido que Fonseca e Costa acentua a fragilidade do personagem masculino, não apenas na ligação com Margarida (Paula Guedes), mas no seu próprio sotaque brasileiro que não se explicaria no contexto dramático, tornando mais doce o personagem, o que se teria perdido na dobragem de Carlos Vereza, obviamente mais próximo duma leitura realista do argumento. Aliás essa escolha de certa maneira arrojada de Fonseca e Costa dá um outro sentido à cena da caça, existente no romance original, em que Alexandre apanha um coelho, sem disparar a arma, e às próprias alusões homossexuais a propósito de Álvaro (Mário Viegas) e duma certa misoginia que parece constituir o refúgio de segurança de todo o filme. Aparentemente Fonseca e Costa parece agora mais interessado numa galeria de personagens masculinos, onde se pressente uma mistura estranha de machismo e fragilidade, iniciada provavelmente com o Elias Santana de BALADA DA PRAIA DOS CÃES, depois de vários filmes onde a mulher era o principal centro de atenções.

 

Se em A MULHER DO PROXIMO podíamos identificar um Fonseca e Costa mais interessado na eficácia narrativa e com pouca coisa que dizer, em OS CORNOS DE CRONOS teremos que reconhecer um dos filmes mais pessoais e arriscados do autor. Que o público aparentemente não tenha correspondido diz certamente muito do incómodo das reflexões que Fonseca e Costa procura e que na linha do já longínquo O RECADO não se situam tanto a um nível psicológico mas, se quisermos, referem antes para o plano dos valores culturais (particularmente na conversa entre Alexandre e Álvaro no passeio lisboeta à noite e na contraposição com o actual marido estrangeiro da Margarida - «Henry acha que és um gentleman»).

 

O palácio aristocrático dos pais de Ana Sofia, onde os relógios páram, constitui ainda um prolongamento dos territórios mágicos, sub-terrâneos, que Fonseca e Costa tem criado nos seus filmes, embora aqui pareça nitidamente que o cineasta não pôde recriar com a necessária liberdade o romance em que se inspirou e terá tido que pagar um tributo excessivo ao narcisismo do escritor. Mas o cinema é também, muitas vezes, uma história de conflitos irredutíveis, como aliás Fonseca e Costa experimentara já com Patrick Bauchau em BALADA DA PRAIA DOS CÃES.

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