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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Os Mutantes - Teresa Villaverde (1998)

Histórias de infância impossíveis de contar 

 

O mérito de «Os mutantes» está no tema mas principalmente na forma que Teresa Villaverde encontrou para o filmar. Talvez se deva saber que, depois de «Três irmãos», Teresa Villaverde tinha um projecto de um documentário sobre as crianças das instituições de reabilitação cuja experiência dura contrasta com o que se supõe ser um mundo infantil. De certa maneira, essa via estava já apontada em «Idade maior» e «Três irmãos» mas a perspectiva nova seria a do documentário. Teresa Villaverde entrevistou esses jovens, recolheu depoimentos, mas viu-se impossibilitada de concretizar esse projecto. «Os mutantes» assume-se como ficção, mas de certa maneira trata de uma realidade que é impossível de contar. Por isso o filme mostra personagens e situações dramáticas, mas não há propriamente uma história, um fio que conduza a narrativa. O título «Os mutantes» também fala provavelmente disso. A inabitabilidade, o lado nenhum para que os passos dos personagens parecem conduzir.A dureza que «Os mutantes» testemunha interpela-nos sobre uma realidade social que a um tempo é profundamente desumana, mas que ainda assim não destrói completamente uma grande força humana e sentido de sobrevivência que sentimos existir nos jovens personagens. Eles são excluídos mas o seu comportamento não é o de vítimas e o olhar de Teresa Villaverde transmite mais admiração do que comiseração.De certa maneira, «Os mutantes» têm pontos de contacto com um outro recente filme português, «Ossos», de Pedro Costa. Mas desde os próprios títulos, podemos perceber que estamos perante projectos sensivelmente diferentes. Onde Pedro Costa encontra a morte, Teresa Villaverde procura a vida e a adaptação. Ambos os filmes falam de exclusão e de uma realidade social insuportável e nenhum deles se deixa embalar pela boa consciência de um discurso exterior que organize essa realidade, mas «Os mutantes», talvez não por acaso, acrescenta ao olhar da câmara um maior espaço para os actores, cuja vitalidade dá uma dimensão ao filme que, aliás, agudiza o olhar crítico de que parte.Realmente, uma grande parte do mérito de «Os mutantes» reside nos actores e no espaço que Teresa Villaverde lhes concede. Na generalidade os jovens do filme vivem uma realidade próxima da dos seus personagens. À excepção de Ana Moreira (Andreia), que tem um desempenho excepcional que lhe valeu o prémio de interpretação do Festival de Taormina, eles são rapazes de instituições particulares, que não vivem com as suas famílias, uma vez que a tentativa de filmar com adolescentes dos próprios estabelecimentos do Instituto de Reinserção Social que o filme refere não obteve a necessária autorização oficial. Mas Alexandre Pinto (Pedro) e Nélson Varela (Ricardo) dão aos seus personagens uma força invulgar e é nesse apelo dos personagens que o filme se organiza e ganha consistência.Um bom exemplo da extraordinária força do filme de Teresa Villaverde está na cena do parto na casa de banho de uma estação de serviço. Trata-se de uma cena de grande dramatismo mas ao mesmo tempo de uma significativa contenção e sensibilidade. Andreia dá à luz um filho que vai abandonar, no ambiente frio de uma casa de banho, e Ana Moreira consegue encontrar o registo certo do sofrimento e de uma vivência que se parece esgotar na dor de um corpo sofrido, onde se mostra, se sente e nada se explica. Nas imagens seguintes, Andreia sozinha, visivelmente desfigurada, toma um galão numa expressão onde o limite físico satura a emoção, e depois caminha e desfalece. Como noutras sequências do filme, Teresa Villaverde encontra uma forma cinematográfica justa, onde o pendor melodramático dos filmes anteriores se depura e transcende. «Os mutantes» é um filme incómodo, corajoso, e que aposta verdadeiramente no material humano que o constitui e não tanto em preconceitos de natureza estética. O cinema de Teresa Villaverde é inteligente e intencional mas justifica-se não em si próprio mas na procura duma realidade humana e social que lhe é exterior.

A.Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/12/1998

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