top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Os Olhos Da Ásia - João Mário Grilo (1996)

As palavras e os sinais 

 

O projecto de "Os olhos da Ásia" de João Mário Grilo passou por diferentes fases no seu desenvolvimento. E isso talvez ajude a perceber o que é no filme mais e menos interessante e até a ajuizar a partir das mais recentes declarações do cineasta (por exemplo a entrevista a Rodrigues da Silva em "Jornal de Letras" , 9/4/97) a parte de risco que o filme comporta. Depois de "O processo do rei" , filme de 1989 , João Mário Grilo fez para a televisão "O fim do mundo", que acabou por ser exibido nas salas de cinema , e "Saramago, Documento" , sendo "Os olhos da Ásia" um regresso de certa maneira ao "cinema" e à temática histórica.Mas João Mário Grilo, que é também professor de cinema numa Faculdade de Comunicação Social (e não exclusivamente de cinema) e alia a essa actividade teórica o exercício regular da crítica de cinema na revista "Visão", onde o comentário a cada filme não abdica de uma postura consistente de defesa de determinado cinema, abreviando razões, não dominante , faz uma opção muito menos "rosselliniana" do que em "O processo do Rei" ."Os olhos da Ásia" não joga apenas numa distancia que evita a dramatização para procurar uma verdade mais próxima do documental, até por vezes do didáctico, mas inscreve no próprio filme um conflito de culturas dominante/dominada , onde das certezas inabaláveis se descobre a dúvida. "Eram palavras , Julião, eram palavras" remata o filme , na perspectiva do padre Ferreira que abjura o cristianismo e se converte ao budismo , enquanto o japonês Julião, também jesuíta, se deixa matar em nome da fé cristã que chegara com os portugueses ao seu país.Na mesma entrevista João Mário Grilo diz que esta é a sua última obra de juventude, destruindo "essa galeria de personagens de expiação que dominaram o meu cinema até agora", e o que surpreende no filme não é o retrato da impotência de Julião , mas a compreensão da abdicação de Ferreira, e mais até do que isso , da ambiguidade da personagem de Miguel, que fora também um dos quatro jovens adolescentes que visitaram a Europa e o Papa quando tinham dezasseis anos , e viveram uma adolescência de descoberta de um mundo novo no sentido contrário ao dos chamados Descobrimentos portugueses. Miguel não se torna , como os outros , padre jesuíta e regressa aos costumes da sua cultura original ,mas enquanto tenta demover Julião da persistência na sua atitude de resistência , aproveitando a cegueira que a tortura lhe trouxera , aparenta ausentar-se permitindo assim que Julião baptize o neto de forma supostamente furtiva.De certa maneira é entre duas culturas , entre duas religiões , entre a fidelidade às suas origens e às crenças de juventude , que se coloca a tarefa talvez menos heroica, mas mais produtiva, da sobrevivência.Inicialmente o projecto de João Mário Grilo centrava-se na viagem dos jovens adolescentes japoneses à Europa , mas o cineasta acaba por se interessar pelo dilema dos anos em que o cristianismo não floresce já em Nagasaki , mas antes é proibido e objecto de perseguição. E entre a fé e a realidade, Ferreira (João Perry) é realmente uma personagem paradigmática. Porque Julião não duvida do sonho da sua juventude, a sua certeza é interior, enquanto Ferreira trava uma luta heroica, mas espera que a realidade exterior confirme a sua razão. Ele espera de Deus sinais, uma espécie de evidencia que lhe seja exterior , e finalmente não resiste mais.João Mário Grilo também faz um filme aberto à realidade onde os supostos iniciais se deixam permeabilizar pelo que encontra. A sua câmara não é já a da encenação rigorosa que obedece à palavra, e à sua fixação em documentos , e não ignora a memória recente de Nagazaki. Assim Jane (Geraldine Chaplin) é uma europeia, muito visivelmente comunitária que volta ao Japão ,onde vivera a infância quando o pai arquitecto colaborara na reconstrução de Nagazaki , após a bomba atómica, para contratar um espectáculo de ópera para exibir na Europa , precisamente sobre a juventude dos quatro adolescentes que foram na embaixada ao Papa.E o próprio cruzamento cultural de Geraldine Chaplin é um emblema de algo que atravessa a linha dramática do filme ,por vezes dando a impressão que João Mário Grilo não procurou as soluções dramáticas mais consistentes , facilitando alguma coisa pelo lado do retrato folclórico (a festa local) ou da entrevista ao padre espanhol que conta o martírio de Julião e a apostasia de Ferreira , embora o realizador tenha o mérito de respeitar as crenças alheias resistindo à tentação fácil de as enformar no seu próprio ponto de vista.A temática das memórias de juventude e da reconstrução e sobrevivência, reactualiza-se em Jane, mas João Mário Grilo não parece apostado em dar a esta personagem a mesma consistência das de Ferreira e Julião , e jogá-las dramaticamente no mesmo plano e não como um olhar reflexivo.É por isso que talvez se possa dizer que , sendo um filme interessante , "Os olhos da Ásia" passa ao lado de um grande fôlego que poderia adquirir, talvez amadurecendo mais o argumento , jogando mais os jovens cantores de ópera também prestes a partir para a Europa (remniscência que quase se acaba por perder face ao ponto de partida original), a representante da Comunidade Europeia e a evocação da destruição e reconstrução de Nagazaki , e o dilema da diferente solução da resistência de Julião e de Ferreira (onde João Mário Grilo parece dominar melhor uma verdadeira expressão cinematográfica).

A.Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/4/1997

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page