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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Ossos - Pedro Costa (1998)

De corpo e alma

  

Há filmes que nos questionam sobre como devem ser encarados. Nem sempre nos contam uma história, embora possam ser feitos de fragmentos de histórias. Frequentemente transmitem-nos um sentimento e esse sentimento pode ser a expressão do autor ou mais que isso apresentar-se-nos como uma visão do mundo. O cinema de Pedro Costa pertence a essa categoria de filmes.De certa maneira a primeira impressão que o seu cinema nos deixa não é a de um enredo, ou personagens ou situações, mas , se quisermos, um estado de alma. Pedro Costa joga num terreno difícil, que é do lado sombrio, melancólico, reservado da existência. Não procura seduzir ou até conquistar o espectador para uma postura militante ou de revolta. É como se lhe bastasse mostrar um mundo de sofrimento onde nem as interrogações o redimem. E curiosamente os títulos dos seus filmes apontam para o corpo ou para a natureza, tanto em "Sangue", como em "Casa de lava", como agora em "Ossos".A morte presente nos cadáveres de "Sangue" e "Casa de lava" ou como ameaça nas tentativas suicidas de "Ossos" parece ser o sinal mais visível do cinema de Pedro Costa. Em "Ossos" pode dizer-se que o próprio título nos remete para o esqueleto e até para o desmembramento, como se se tratasse de um mundo descarnado.De facto o filme retrata a miséria suburbana de populações imigradas, neste caso cabo-verdianos em Lisboa, precisamente depois de ter rodado "Casa de lava" em Cabo Verde. Os personagens do filme, particularmente na parte inicial, quase não falam, pode dizer-se que não têm voz. O quotidiano de movimentos aparentemente sem sentido é frequentemente interrompido pelos ruídos abruptos, que exprimem a agressão da cidade.Neste conjunto um homem percorre as ruas com um bebé ao colo. Curiosamente o cadáver dos filmes anteriores é como que substituído pelo recém-nascido, o passado (esse passado misteriosa da mulher agónica de que só se vêm as mãos no início de "Casa de lava") dá agora lugar ao futuro, mas o filme comunica o mesmo estado de suspensão, onde não parece haver nem repouso (para os vivos ou os mortos) nem acolhimento.Mesmo os ambientes hospitalares recorrentes nos filmes de Pedro Costa não parecem ser lugares de tratamento mas estados de passagem."Ossos" é um filme duro, sem fazer humor simplista dir-se-ia duro de roer. Os seus personagens não tem voz, as suas histórias não têm sequência, parecendo sublinhar que qualquer solução seria uma ilusão.Como em "Casa de lava" o crioulo ocupa um lugar importante, que parte naturalmente da ausência de voz e de história dos seus personagens. As narrativas lacunares do cinema de Pedro Costa são estranhas como o crioulo, parecendo qualquer coisa de familiar e que se entende pela similitude com a linguagem habitual, como o crioulo em relação ao português, mas por detrás de uma aparente semelhança fonética fica o mistério, a incompreensão, a intencional ocultação dos elementos perceptíveis.Pode no entanto dizer-se que "Ossos" como "Sangue" falham onde "Casa de lava" se superava. A viagem penosa de repente já não nos interroga a partir da realidade mas da sua construção abstracta, ao passo que "Casa de lava" se abria ao ambiente e ao imprevisto da rodagem em Cabo Verde. Talvez seja o mesmo o ambiente emocional de que o filme parte, mas ao mostrar-se menos aberto ao exterior, como que valoriza uma tendência de ânimo difícil de compartilhar, porque precisamente se estrutura no isolamento. Dito de outra maneira, o projecto estético ou a elaboração de "Casa de lava" parecia ser mais consistente, não se atribuindo o seu carácter lacunar a um menor esforço do realizador. Pedro Costa não deixa de ser uma das promessas mais surpreendentes do mais novo cinema português, mesmo se somos levados a considerar "Ossos" um filme falhado e um passo atrás na sua obra. Há filmes falhados que são sinais de uma gestação incompleta, embora muitas vezes o efeito perverso do aplauso generalizado, pelo menos de um sector da crítica, possa levar o autor não para uma busca mais exigente, mas para o deslumbramento nas charadas e nos enigmas já próximos do insuportável e autocomplacente tique pessoal. Depois de "Sangue" Pedro Costa soube-nos dar em "Casa de lava" uma obra fascinante e surpreendente. "Ossos" obriga-nos a questionar: e depois o quê?

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 23/11/1997

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