top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Paraíso Perdido, Adão E Eva, Pandora E Corte De Cabelo

OS MITOS DO PARAÍSO

  

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 20

 

Há filmes que constituíram um corte na continuidade do cinema português. Por exemplo, VERDES ANOS de Paulo Rocha, com a imagem de uma outra juventude e um outro estrato social. Por exemplo, O CERCO de António Cunha Telles, ele que fora o produtor do chamado «cinema novo», com uma nova imagem da cidade e a proposta de uma outra relação com o público. De cada vez é como se tudo voltasse ao princípio e retomamos o mito fundador.

Há também os filmes de corte que estão no fim dum ciclo, frequentemente já discrónicos com o tempo em que se geraram, como são os filmes de Alberto Seixas Santos, BRANDOS COSTUMES, GESTOS E FRAGMENTOS e o, apenas agora tardiamente estreado PARAÍSO PERDIDO (aqui também a descolonização e a perda tanto a nível pessoal como colectivo). 

Curiosamente ADÃO E EVA de Joaquim Leitão surge ao mesmo tempo embalado por uma realidade nova, funcionando a nova imagem da televisão um pouco como a mudança sociológica que O CERCO espelhava, e tentando, neste caso com um sucesso que ultrapassou as anteriores experiências de Joaquim Leitão, uma relação diferente com o público. 

A proximidade de exibição no cartaz cinematográfico português não pode deixar de associar os filmes de Joaquim Leitão e Alberto Seixas Santos, por um lado porque muito visivelmente fazem referência ao paraíso, mas também evidentemente pela presença em ambos de Maria de Medeiros, em dois trabalhos distanciados no tempo, do começo de carreira à afirmação como uma das poucas vedetas do cinema português (a par provavelmente com Joaquim de Almeida com quem volta a contracenar depois de RETRATO DE FAMÍLIA de Luis Galvão Teles), e em ambos os personagens engravidando, ou seja cumprindo assim o mito fundador de ambos os títulos.

Repare-se que o filme de Seixas Santos retoma temas como o da ausência do pai (como em BRANDOS COSTUMES) ou do espectro da loucura (ou a dificuldade de sentido de GESTOS E FRAGMENTOS) mas abandona de certa maneira o registo metacinematográfico de Godard ou Straub do seu cinema anterior para também ele se converter ao cinema  de ficção normalizado.

Se PARAÍSO PERDIDO é um filme das dificuldades gestacionais, como a própria filmografia de Seixas Santos, - Cristóvão (Rui Mendes) desiste da tese e recusa a paternidade - deixando o comentário final de que «o fim é sempre triste»; ADÃO E EVA talvez não possa responder à pergunta posta na maternidade sobre «quem é o pai?». Realmente Joaquim Leitão retoma agora na personagem de Catarina (Maria de Medeiros) a vertigem do percurso de Miguel (Joaquim de Almeida) em UMA VIDA NORMAL, substituindo-se a televisão ao mundo da publicidade, mas o resultado parece não ser o de uma gestação de termo, apressada eventualmente pelos compromissos de outros pais, como o produtor Tino Navarro ou a estação de televisão que o co-produziu. O filme de Joaquim Leitão constrói uma  situação de que se adivinham prolongamentos que deixa fugir, do programa televisivo como um fruto de uma relação, à «maçã» que se interpõe entre um Adão e uma Eva, seja o filho desejado, o terceiro do triângulo amoroso, o concorrente no âmbito profissional, o director de programas ou até o público que ameaça a individualidade da personalidade que se expõe na televisão (com o momento crítico da entrevista política nas escadas do parlamento). A essa falsa caução da câmara de televisão, Joaquim Leitão que desde o inicial DUMA VEZ POR TODAS sempre gostou de trabalhar com a câmara visível no plano ficcional contrapõe um dos melhores momentos do filme, com Maria de Medeiros falando com o filho que gera através da filmagem do seu discurso num contexto doméstico.

No entanto uma das dificuldades do filme está no próprio trabalho de direcção da actriz: Joaquim Leitão por conveniência do papel necessitava de destruir a aura da actriz no cinema português, mas não conseguiu essa trivialização que, por exemplo, Tarantino lhe transmitiu em PULP FICTION e o resultado é que Maria de Medeiros acaba por não convencer nem como jornalista de televisão, nem como grávida. António Cunha Teles, cujos filmes espaçados acabam por retratar de O CERCO e MEUS AMIGOS a VIDAS um certo espírito de geração, surge agora com PANDORA, também referido à mesma imagem mítica (embora seja o nome do barco em que Raoul encontra a morte praticamente desejada, não deixa de ser na mitologia grega o equivalente à Eva da tradição judaico-cristã) e aliás terminando também na gravidez de Teresa (agora Inês de Medeiros), que nas cenas iniciais se manifestara incapaz de imaginar. O filme porém deixa-se invadir por uma espécie de descrença que retira vitalidade à peculiar forma de Cunha Teles trabalhar as personagens e os próprios actores ou as suas vidas próprias num registo quase psicodramático, visível principalmente em MEUS AMIGOS e VIDAS. PANDORA, na sua alegoria marítima, é um filme de náufragos, salvos «in extremis» e afinal condenados a uma certa fragilidade (Teresa aceita a gravidez para não deixar Raoul morrer outra vez), que de certa maneira é a expressão do envelhecimento de personagens que podiam ser as de O CERCO.

Talvez CORTE DE CABELO seja a imagem actual desse espírito, eventualmente aí menos VERDES ANOS do que a proximidade do autor, Joaquim Sapinho, com Paulo Rocha de quem foi co-argumentista no abortado projecto O NAUFRÁGIO DE SEPÚLVEDA, deixaria supor. Com um trabalho de câmara sacudido, onde talvez haja influencia de certos filmes recentes de Oliver Stone (NATURAL BORN KILLERS), Woody Allen (MARIDOS E MULHERES) ou Robert Altman (PRÊT-A-PORTER), Joaquim Sapinho retrata um quotidiano sem horizontes, onde num dia sem nada de especial um par casa-se na conservatória e num registo paredes-meias com a comédia parece nada acontecer, a menos que de certa maneira passe pelo corpo, se não numa gravidez, pelo menos num corte de cabelo, quase chegando à pele, essa fronteira simbólica com o mundo exterior, e portanto com a ameaça de invasão ou de despersonalização (como trauteia a personagem «I can hardly believe I'm real»). CORTE DE CABELO faz o diagnóstico duma espécie de ameaça ecológica, aliás, provavelmente significativa para uma nova geração, bem simbolizada na excelente cena da quase asfixia no envólucro do colchão, aliás como outras sequências do filme como que coreografadas num sentido do movimento dos personagens, próximo do trabalho de Ana Luisa Guimarães em NUVEM, um filme que estabelecerá com CORTE DE CABELO uma certa familiaridade de geração. Embora, porque nestas coisas poucos anos podem fazer muita diferença, provavelmente, neste caso, como nas gerações anteriores (VERDES ANOS, O CERCO) possamos estar perante um filme de corte.

Um casal só num apartamento, pretensamente suspenso um quotidiano invasivo, é ainda em CORTE DE CABELO, provavelmente o mito do paraíso, afinal indicado no ritual do casamento, já em muitos dos seus traços vivido de um modo anacrónico. De certa maneira é o paraíso perdido.

 

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page