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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Party - Manoel De Oliveira (1996)


O OUTRO ÂNGULO

 

Quando da antestreia de Party de Manoel de Oliveira na Casa das Artes no início do mês de comemoração do centenário do cinema português que termina neste fim de semana (e em que a actividade da Cinemateca Portuguesa teve a sua sede simbolicamente transferida para o Porto), o cineasta na apresentaçao do filme, fazendo um trocadilho com o título que obviamente diz respeito também a festa ou ao encontro declarou "o meu filme é apenas parte".

 

No imediato das palavras, Manoel de Oliveira queria referir-se a parte do todo que é o cinema e em particular o cinema português que se celebra. Mas quem acompanha a obra de Manoel de Oliveira sabe como a noção da parcialidade da camâra e de uma certa luta não tanto por encontrar a complementaridade de outra parte, mas por perceber o todo que justifica a própria noção da parte é uma preocupação central da sua filmografia.

 

Aliás Party a este respeito prolonga directamente Vale Abraão e O Convento na exploração das complementaridades do masculino e do feminino. Alias João Bénard da Costa na folha da Cinemateca editada para a antestreia do filme recorda que Oliveira inicialmente terá pensado para o filme o título surpreendente de "A parte da parte perdida no Garden Party" e retoma a atenção de Goethe de O Convento em que se fala da parte da parte. Tudo isso pode parecer abstrato e até de certa maneira uma racionalizaçao abusiva se não tivermos em conta a coerência não só temática, mas também estética da obra de Manoel de Oliveira e como esta preocupação se manifestava em todo o imaginativo trabalho de campo/contracampo particularmente em Francisca, mas já anunciado nos movimentos de câmara de O Passado e o Presente ou nos planos fixos com os personagens que dialogam em off em Benilde até Os Canibais sem que o discurso do cineasta claramente assumisse essa preocupação. O modo de olhar foi alimentando a reflexão e de certa maneira cada filme é uma parte que gera outra parte de um todo que cada filme e cada personagem também tende a ser. Party é de certa maneira o contracampo do que Manoel de Oliveira mostrava em O Convento. Ambos os filmes como é comum na obra de Manoel de Oliveira se prendem a uma casa, mas reparemos que os protagonistas de O Convento (Catherine Deneuve e John Malkovich) vêm de fora e de certa maneira são perturbados (ou questionados) na sua relação de casal quando ultrapassam o portão do lugar misterioso e ligado ao sagrado (ou ao diabólico que lhe é complementar) enquanto os de Party (Leonor Silveira e Rogério Samora) vivem no interior e são perturbados por personagens que por aí passam numa evidente transitoriedade. É como se o olhar (que é o do cineasta e de proposta ao espectador) rodasse 180° em certa medida numa postura especular (que tem que ver com o espelho e com a especulação) que torna o mesmo completamente diferente.

Se quisermos Manoel de Oliveira nem pretende guiar este movimento, antes preside a ele talvez no fundo como um mestre de cerimónias (daí não se colocar no olhar de Deus mesmo quando essa tentação diabólica que se figurava em O Convento no diálogo no monte de John Malkovich com Luís Miguel Cintra parece inevitável à sua vontade de saber). Mais uma vez na apresentação do filme na Casa das Artes Manoel de Oliveira disse quase tudo isso de uma forma simplicíssima, este filme existe porque existiram os actores (Rogério Samora que estava presente) e existiu o escritor (Agustina Bessa Luís também presente) e o cineasta apenas assistiu a isso. E assistir para o Manoel de Oliveira que apesar de tudo se deve recordar que começou a fazer cinema pelo lado documental de Douro Faina Fluvial é principalmente testemunhar.

Party é assim um filme indissociável do texto de Agustina Bessa Luís, rico dos aforismos em que a escritora se transcende, mas também do seu cinema mais recente. Manoel de Oliveira trata o texto de uma forma diversa do que acontecia principalmente nos seus filmes camilianos, Amor de Perdição e (anos mais tarde) O Dia do Desespero. Não há verdadeiramente uma contradição, mas mais uma vez um caminhar para a outra parte. O texto era nesses filmes o reflexo da vida, recitá-lo era a evidência de uma ausência, filmar Camilo era dar a ver aquele que, por definição, não estava.

 

Noutros filmes Oliveira obviava essa fronteira pelo lado da ressurreição (O Acto da Primavera, O Passado e o Presente ou A Divina Comédia). Nos últimos filmes, talvez neste aspecto sendo Non o ponto charneira onde Manoel de Oliveira tentou filmar de certa maneira o último passo, a agonia (Vale Abraão a outro nível tem também a ver com isso). Oliveira comporta-se face aos actores com uma outra liberdade e sintomaticamente os nomes próprios dos personagens de Party são os dos actores. Deve dizer-se que Leonor Silveira (uma vez mais) e Michel Picolli conseguem de uma forma espantosa transmitir uma presença que de certa forma está num plano que se não reduz às palavras.

 

Sendo fascinante, se calhar o diálogo de Agustina Bessa Luís não é o essencial, ou então é, como Manoel de Oliveira na apresentaçao do filme deixou perceber, apenas a outra parte. As palavras não definem os personagens, mas eles sim definem-se numa espécie de movimento próprio que tornam as interpretações de Leonor Silveira e Michel Picolli inesquecíveis.

 

Não certamente por acaso Manoel de Oliveira ao mesmo tempo prescinde completamente da música em Party, depois de ter explorado a música das palavras até à opera e de ter passado da música original de João Paes até Os Canibais a uma escolha da música de autores clássicos autónoma e quase organizadora como uma parte de uma determinada parte dos filmes (o que era muitíssimo cuidado em filmes como A Divina Comédia ou Vale Abraão). Em Party tudo se concentra nas palavras e nos quatro actores (Irene Papas completando o naipe já citado), mas talvez seja já sem palavras que Manoel de Oliveira acaba por tentar dizer ludo no extraordinário epílogo do filme.

 

Arruinado (sem dinheiro, mas também provavelmente sem a riqueza que no filme se projectara nas palavras), Rogério é aceite por Leonor, mas o que fica fora é uma mala de roupa desarrumada, uma chuva agressiva e um guarda chuva que já não protege e só atrapalha num gag que evidencia o humor, a imaginaçao e a profunda sabedoria do genial autor que é Manoel de Oliveira.


A. Roma Torres, Jornal de Notícias, 30 de Novembro de 1996

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