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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Pedro Só - Alfredo Tropa (1972)

Pedro Só, Alfredo Tropa, Portugal, 1972

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Maia Março 1974, p. 79-82

 

 

Colaborador de Faria de Almeida em Catembe (filme inédito), de Paulo Rocha em Mudar de Vida e de Fernando Lopes em Uma Abelha na Chuva, com larga prática no do­cumentário e na televisão, Alfredo Tropa não é propriamente um estreante. Estreia é apenas a sua opção pela longa-metragem e pela ficção. Porém, mesmo em ambientes rurais idênticos aos dos filmes em que colaborou, Tropa exibe uma certa inexperiência de que toda a linha narrativa de Pedro Só se ressente.

 

Uma longa panorâmica e um «travelling» óptico são a abertura do filme destacando do ambiente inóspito de Trás-os-Montes um personagem que o filme irá acompanhar. Pedro, agressor impensado, e logo fugitivo, solitário, marginal. É logo desde essas cenas que o filme se define na sua toada documentarista que pretende retratar as paisagens e os rostos, que ora destaca o personagem ora destaca o personagem, ora o dilui nos montes e planícies. Logo a seguir a mão segura do repórter dá em traços certos o ambiente de uma romaria com a sua procissão, com a exibição de um faquir, etc.  A terra, as ruas, as casas, os rostos vão convergindo esse quadro naturalista a que o ritmo dos planos dá o tempo exacto da vida da província e das suas festas. Mas é igualmente desde o início que o documento se perde pela inclusão de uma ficção de evidentes insuficiências narrativas. A agressão aparece num curto plano mal introduzido e comentado por uma música insuportável - a música, as canções são um equívoco ao longo de todo o filme, se exceptuarmos a cena da romaria - seguindo-se-lhe uma deficiente transição da fuga do personagem para o diálogo durante o caminho, redundante e mal elaborado, agravado pela má qualidade das interpretações e da sonorização, já de si difíceis numa desnecessária encenação ao longo da estrada.  Igualmente na romaria é precisamente a presença de António Montez e de Jorge Ramalho, mal dirigidos e sem se integrarem no conjunto, que denuncia o artificialismo da ficção. Se por vezes como na sequência da feira, Tropa deixa o fio narrativo em segundo plano, quase sempre pelo contrário a preocupação de construir uma história inutilizou a crónica que as imagens facilmente permitiriam, se tivesse encarado o personagem principal como revelador de um contexto geográfico e social e não como o protagonista que faz correr a acção como qualquer galã do cinema americano.

 

Pedro era assim uma personagem que à partida poderia ser um símbolo e uma presença crítica muito próxima da figura de Mal-de-vivre em O Recado. Desejaríamos quase que a figura física se lhe assemelhasse e aquela maturidade substituísse o riso envergonhado de pobrezinho convencional do Pedro de Tropa. Sem dignidade, sem profundidade inte­rior, Pedro vai perdendo as potencialidades que se anteviam em cenas banais, como o banho no rio. ou ridículas pelo excesso de intenção, como a da recepção em casa das beatas protectoras. Nem a poesia de um personagem que faz do campo a sua casa, da natureza a sua intimidade, nem a sátira social a uma noção de caridade que é uma substituição de certo modo erótica de um amor desencontrado, perdido ou reprimido, conseguem impor-se na sonolência pleonástica de planos, diálogos, olhares - montagem atabalhoada que inutiliza o intimismo que o ritmo do filme permitiria.

 

Fracassada uma cena importante e significativa como era a da conversa com o miúdo (em que Tropa se ausenta mais uma vez do rosto de Montez deambulando por uma ilustração plasticamente supérflua), só no segundo diálogo entre Mon­tez e Ramalho se entrevê a verdade de um personagem amargurado («ninguém anda nesta vida por gosto»). Infeliz­mente é aí, quando o filme parece ressuscitar as esperanças abandonadas, que tudo se perde definitivamente no romance de amor com Clara, convencionalmente decalcado do cinema romântico americano, falso e rebuscado, sem verdade psico­lógica ou sociológica. Excesso de palavras, canção inoportuna, primeiros planos pretensamente bonitos, pequenas elipses mal construídas, interpretações desajustadas.

 

A sequência final é outra fuga de Montez, fuga da vida cansada de vagabundo e do amor desiludido, fuga que se supõe de itinerário inverso do inicial - regresso que se não chega a definir. De repente um automóvel (matrícula francesa; porquê?) atropela Montez, cena que se reduz, como as duas outras cenas de violência (a agressão inicial e a disputa na taberna) a um curto plano de que se oculta o esboço para se fixar apenas a consequência. Estética que valoriza o destino, o acaso, o mágico, que no fundo ignora as causas e as relações, que se enquadra finalmente numa visão de superfície. Um último plano fixo de crianças que se aproximam a caminho da escola, sobre uma canção de espe­rança, acentua no ligeiro «travelling» para o cadáver de Pedro o fatalismo que não é traço observado num sector deprimido de rostos velhos, mas a própria característica do filme. Fim convencional e ambíguo que nada vem acrescentar.

 

Pedro Só é, portanto, talvez o filme mais fracassado da geração Gulbenkian do cinema português. É, porém, o filme que mais se aproxima da primeira geração do novo cinema português, na sua austeridade, na busca do povo português e dos seus problemas, numa ética neo-realista que os últimos filmes têm abandonado. É, pois, um filme a considerar por ressuscitar uma faceta muito importante do cinema português. Que o seu resultado tenha sido medíocre não atenta sequer contra as esperanças que legitimamente Tropa ainda justifica. Se Alfredo Tropa revir o seu filme criticamente e souber clarificar os seus objectivos e purificar o seu estilo pode acontecer muito bom cinema, com características documentais que só em António Campos (Vilarinho das Furnas) encontram igual expressão. Pedro Só é um filme totalmente falhado, mas que não deve destruir o seu autor. Filme totalmente falhado fora Verdes Anos e Paulo Rocha soube encontrar em Mudar de Vida um caminho mais certo.

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