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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Perdido Por Cem - António-Pedro Vasconcelos (1973)

Perdido Por Cem, de António-Pedro Vasconcelos, Portugal, 1973

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Março/1974, pgs. 86-89 

 

O primeiro filme de um cineasta, numa cinematografia como a portuguesa que poucas oportunidades oferece, é um exame que corre o risco de alcançar as dimensões de uma «tese de licenciatura». Cinéfilo de longa data, acompanhando nostalgicamente todos os acontecimentos do novo cinema português, com actividade crítica regular em várias publicações («O Tempo e o Modo», e mais recentemente «Rádio e Televisão», «Flama» e agora «Cinéfilo»), António Pedro Vasconcelos não poderia resistir à tentação de sobrecarregar o filme de intenções e demonstrações, por muito autodomínio que se lhe reconheça ao ler a sinopse prévia de Perdido por Cem... («Vida Mundial», 27-4-73). Efectivamente se nem todas as citações cinematográficas (particularmente de certo cinema americano da simpatia de A. P. Vasconcelos) encontraram uma concretização significativa, não deixa de parecer numerosa (e em certa medida gratuita) a galeria de personagens secundários que o filme retrata em traços de caricatura (Nuno, Albano, Carlos, Marta, etc.). Se é verdade que a austeridade do filme, sempre muito centrado no personagem principal, pouco expansivo, acabrunhado, lhe evita o tom «lelouchiano» de algumas cenas de O Cerco, o facto é que Perdido por Cem... aparece tal como O Recado a buscar um certo retrato do contexto lisboeta na moldura estabelecida por Cunha Telles. Realismo que se evidencia em várias expressões? Traços parcelares que se ampliam da prática dos autores nos filmes de publicidade? Hipersensibilidade moralista a uma vida subterrânea de determinada esfera lisboeta? Convenção cinematográfica que se vai generalizando como contexto verosímil? Seja qual for a resposta por que se opte o resultado não parece totalmente puro.

 

Perdido por Cem... é, portanto, uma crónica de Lisboa, de certa Lisboa e de certos tipos, que consegue mesmo o humor de determinados «gags», ausentes do que se tem chamado o novo cinema português, com grande escândalo dos que consideram o cinema satírico da pequena burguesia lisboeta um dos pontos altos do cinema português. E de António Silva, o grande actor que é o «ex-libris» desse período do cinema português, que nos surge a imagem no jovem falador e hábil em expedientes que Nuno Martins retrata. Porém Rui, como todos os outros personagens, não são retratos vivos e elaborados, unidos pela coerência psicológica de um personagem trabalhado. São, em certo sentido, máscaras, imagens soltas, traços às vezes únicos de recordações do relato de Artur. Artur é duplamente o centro do filme, mudo e comentador, numa voz «off» que ora se antecipa, ora se explica, ora se completa. Presença excessiva de uma narração, sublinhada pela ausência de música, e que introduz no filme o «flash-back» e a sua consequente subjectividade introspectiva.

 

Crónica interior de um personagem em contraste com o seu meio. Artur não é nem a crítica lúcida nem a revolta agressiva. É aliás - como também é característica deste género de filmes do novo cinema português -um personagem a quem acontecem coisas, que os outros influenciam e manipulam. Que se retrai e refugia.

 

O tema do amor é central em Perdido por Cem... já que desde início Artur se vai referindo a Joana. Desde a conquista da turista que Rui projecta durante a boleia, até aos comentários machistas de vários personagens, o filme foca atitudes de amor em que o interesse e o comércio são o fundo (António Pedro no escritório de Rui).

 

Começando sem dinheiro, arriscando infantilmente no jogo, Artur é no dinheiro como no sexo um personagem diferente que, se pensa no estrangeiro é por uma necessidade de fugir e não para, como Rui, explorar os emigrantes. «Se eu tivesse vinte anos e soubesse o que sei hoje». Reflexão amargurada sobre a juventude que em si própria se perde. Juventude que é característica de todos os personagens, mas que só parece ter significado no amor entre Artur e Joana. Porém, com um sentido fatalista que sempre faz recear a felicidade prolongada, Perdido por Cem... termina numa morte, morte que não é o efeito dramático do seu sentido crítico, mas a consequência natural da «love-story» que não pode continuar. Talvez seja aí, e não no paralelismo do policial negro americano da última sequência, que mais se nota e menos se critica uma certa convenção do cinema americano, este romântico e recente.

Oscilando entre belas sequências que se apontaram (o encontro Artur-Joana, a sequência final) e alguns defeitos técnicos (principalmente a iluminação de interiores), Perdido por Cem... é um filme muito sincero e personalista, caldeado por uma reflexão sobre o cinema que parte mais do encantamento de determinadas cenas (como se o cinema fosse segundo a definição de Rui Nogueira uma antologia de momentos de filmes - ver «Écran 72» n.° 2) do que de determinada teoria amadurecida. Então o seu cinema seguirá de perto os primeiros filmes de Godard (também ele anteriormente crítico), de quem Vasconcelos retém o gosto da citação (cena da gravação de Sam Fuller, em que Carlos cita uma cena semelhante de Pedro-o-Louco) e a economia de um ambiente policial a sair do cinema B americano (nesse ponto muito semelhante a O Acossado). Não parece haver como se pretendeu, relações explícitas com o cinema de Rouch, na construção de uma ficção que se documenta (já que o acto da filmagem não foi uma provocação, mas uma rodagem mais ou menos pré-estabelecida), ou com o cinema de Bresson, em que os personagens não procuram a representação naturalista de Perdido por Cem... Na direcção de actores António Pedro Vasconcelos recorre sobretudo aos diálogos quotidianos (que o cinema português nunca utilizou tão bem), numa lição bem aprendida da «nouvelle-vague» francesa. Situa-se nessa naturalidade de representação (que não é a representação naturalista teatral, note-se), duas características já presentes em 27 Minutos com Fernando Lopes Graça: a presença de crianças (a filha de Marta) e a falsa naturalidade das entrevistas (a cábula na entrevista de Vitorio Santos, única cena «verdadeira» do filme). Quanto à interpretação, como no que respeita aos outros meios expressivos, Vasconcelos apenas contraria algumas regras clássicas( proeminência da narração, plano fixo prolongado quado Artur fala do pai), mantendo a naturalidade e a continuidade de toda a narração. É um filme de personagens-actores, como sugerem algumas passagens dos diálogos, mas precisamente centrado na «verdade» dos personagens (na linha da Maria Cabral de O Cerco). Não há, aliás, o simbolismo que permitia a O Cerco ou O Recado retratarem a alienação do dinheiro ou o medo generalizado. Perdido por Cem... é, em certo sentido, um filme autista em que a realidade apenas reforça o isolamento do protagonista. O final fatalista vem inclusivamente impedir a fuga desse isolamento, uma certa libertação que se entre viu. «Marinheiros de raiz sem águas para navegar».  

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