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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Recordações Da Casa Amarela - João César Monteiro (1989)

A GRANDE PURIFICAÇÃO

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 9, Dezembro/1989, pgs 38-40 


 "Eu sou! Tu és! Nós somos rapaces, pérfidos, sacanas. Jamais se dirão coisas destas. Jamais! Jamais! Verdadeira revolução porém seria a das confissões, a grande purificação"Louis-Ferdinand Céline, in Mea Culpa, ed. port. Antígona 

 

Em tempos já distantes João César Monteiro publicou um texto sobre O Passado e o Presente de Manoel de Oliveira onde faz esta surpreendente afirmação: "No contexto português, Manoel de Oliveira faz parte da pequena minoria de realizadores católicos (os outros são Paulo Rocha e , a um nível mais modesto, o autor destas linhas) para os quais o acto de filmar implica a consciência de uma transgressão" (publicado no Diário de Lisboa e transcrito recentemente em Portugallo- "cinema novo e altre..., Marsilio Editore, 1988). Talvez Recordações da Casa Amarela venha esclarecer definitivamente esta posição.

Durante muitos anos sustentei que o cinema de João César Monteiro não acaba de resolver o conflito de uma filiação contraditória. O tratamento distanciado e cerebral parecia evocar Manoel de Oliveira, em todo o caso pelo seu lado mais Straub ou Godard, ou a nível teórico na linha dos Cahiérs, enquanto os temas tinham a força interior e radical de um Pasolini, por momentos alcançando um semelhante sentido poético. E embora Pasolini não pareça ser um dos cineastas de abeceira de João César Monteiro (não me lembro pelo menos de citações que fundamentem essa ideia) não é difícil ver em Veredas qualquer coisa do sentido primitivo de O Evangelho Segundo S. Mateus, ou em Silvestre uma magia próxima da trilogia Decameron, Contos de Cantuária e Mil e Uma Noites, ou afinidades entre À Flor do Mar e Teorema. Mesmo Recordações da Casa Amarela mais do Feios, Porcos e Maus, com o qual alguma crítica apressadamente o comparou, poderia reenviar para A Terra Vista da Lua. Mas agora acontece que João César Monteiro se aproxima de Manoel de Oliveira principalmente no plano temático enquanto formalmente se prolonga o caminho aberto por À Flor do Mar, de um cinema mais próximo dos padrões com que o espectador comum está mais familiarizado, particularmente os da comédia popular portuguesados anos 40 (aí seguindo o Fonseca e Costa de Kilas e A Mulher do Próximo ou o Fernando Lopes de Crónica dos Bons Malandros). Mas ainda aí o carácter intransigente de João César Monteiro afirma-se na referência a um cineasta "maldito" do cinema mais aparentemente normalizado do mundo que é o norte-americano - Erich Von Stroheim, referência tutelar de Recordações da Casa Amarela tanto quanto o também "maldito" Céline, e note-se que a farda e o monóculo do disfarce final têm tanto de spinolista como de stroheimiano.

Realmente porém o tema central de Recordações da Casa Amarela tem surpreendentes pontos de contacto com O Meu Caso de Manoel de Oliveira. Independentemente de o protagonista se chamar João de Deus (e de não ser eventualmente neste caso anedótica ou superficial a referência ao conflito de Deus e de César que na sua origem bíblica remete para o dinheiro que é ainda evidente leit-motiv do filme) ou de uma das primeiras cenas o mostrar solitário numa igreja, Recordações da Casa Amarela é ainda como O Meu Caso, um discurso de Job, mesmo nas suas características apocalípticas, enquanto ao mesmo tempo é ainda uma afirmação sobre o indizível (cf. o meu artigo Cinema do indizível, em A Grande Ilusão, nº 6). Daí toda a sua desconfiança dos discursos onde se poderá depositar alguma enganosa esperança, verdadeiramente coerente com as relevantes citações de Céline desde o monólogo inicial a retomar a própria abertura de Morte a Crédito ("Disseram coisas. Não me disseram grande coisa"). Nesse sentido se pode referir a sátira ao neo-realismo na cena do restaurante com Ferdinando (ainda uma alusão a Céline), a recusa aparentemente cruel do sentimento com a mãe nas escadas e, por fim, o evitamento de um tratamento heróico da loucura ou da fuga do hospital nas cenas finais.

O que há, não sei se de esperança, mas pelo menos de saudável em Recordações da Casa Amarela não se expressa no engano das palavras mas situa-se no plano poético, na característica expressiva da interpretação de João César Monteiro e do tratamento da imagem com direcção de fotografia de José António Loureiro e cenografia de Luís Monteiro. Trata-se de habitar um ponto de vista de uma improbabilidade radical, de uma interiorização numa postura confessional, em todo o caso não directamente biográfica mesmo que uma ou outra alusão possa ser mais pessoal, o que evita todo o cinismo bem como a tentação  do miserabilismo ou da autocomplacência. Em última análise é paradoxalmente uma afirmação de fé, na missão que lhe é confiada por Lívio, exemplar na sua loucura sensata.

O duplo papel de realizador e intérprete que João César Monteiro acabou por assumir dá ao filme uma dimensão entre o narcisismo e o masoquismo que retém alguma coisa de Charles Chaplin ou de Woody Allen. Isso permite-lhe uma solução estética iminentemente ligada ao personagem que supera uma menos acessível estética da negação à Adorno e Escola de Frankfurt como alternativa à integração dos conteúdos revolucionários em padrões formais ideologicamente condicionados, aparentemente mais de acordo com o radicalismo que o filme assume na sua crueza e uma vez mais nas referências a Céline.

E é ainda por aí que o filme se abre a um ponto de vista infantil, aparentemente ingénuo, que permite conciliar a pureza e a crueldade em João de Deus, o nome também a evocar o poeta e uma outra Cartilha Maternal, talvez bem mais perversa. Aliás as crianças "com o coração apertado" são desde logo referidas na legenda inicial que justifica o título na alusão "à casa onde guardavam os presos" e, na última cena, a da transfiguração do "Nosferatu" vem precisamente interromper (ou prolongar) uma brincadeira de crianças.

E o próprio tratamento do corpo nas suas progressivas transfigurações (a preparação no barbeiro para o disfarce de oficial de cavalaria, a falta de intimidade no hospital psiquiátrico, o lado fantasmático presente no "Nosferatu"), remete ainda para a infância no seu equivalente autista, misterioso, que por outro lado sofre a evidência dos limites e a negação da omnipotência, ainda que extremada na inacessibilidade do sexo e na dolorosa distância da mãe. Para não falar do regresso à infância que é a festa de (cinquenta) anos, em todo o caso a marcar a consciência do envelhecimento (e aí são notáveis as referências às "chagas" da doença, à magreza acentuada, a outro nível ao corpo agónico da mãe, sempre colocando o corpo numa exposição pouco habitual no cinema que no fundo sempre o tem ocultado ou, o que é mais ou menos o mesmo, idealizado).

Finalmente o dinheiro (ligado evidentemente ao sefr adulto) é também figurado em Recordações da Casa Amarela de uma forma visível, repetidamente presente, incomum no cinema (podemos pensar em L'Argent de Bresson e pouco mais). Não se trata do dinheiro referente abstraxcto mas das notas que pagam os duvidosos textos de encomenda, que se exigem à mãe, "até aos trrocos" e "nada de pieguices", que se procuram nos objectos pessoais de quem já morreu, associando a recordação sentimental e a herança, que se deixam sobre o corpo do desejo não satisfeito, ligando o sexo e o valor de troca, que aparentemente conataminam todas as relações, com a excepção do desapego de Lívio só possível na gratuitidade das relações no manicómio.

 

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