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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Retrospectiva Alexandre Kluge na Casa de Cinema Manoel de Oliveira

DEMOLIÇÕES E RECONSTRUÇÕES EM SALA ESCURA

António Roma Torres

 

A retrospectiva do cineasta alemão Alexander Kluge na Casa de Cinema Manoel de Oliveira em Serralves no Porto que decorreu entre 18 de Julho e 10 de Novembro de 2021 permitiu repor a pergunta baziniana "O Que é o Cinema?". E estou em crer que apesar de Kluge se ter definido na filmografia recente como criador de televisão de autor, verdadeiramente o que ele faz é cinema, ou seja, na querela dos dispositivos de Bellour para ser visto em sala escura. Isso ficou muito evidente na ficção feita imagens, entre os naufrágios do Titanic e do Costa Concordia em 100 Anos SOS (2013) ou no circo que chega à cidade no filipino Happy Lamento (2018).

A filmografia de Kluge é extensíssima e, portanto, é difícil escrever sobre a obra. Pelo contrário tudo nos convida a escrever sobre as obras, cada uma per si, ou em pequenos grupos que Kluge vai servindo como um chef zeloso, não só da confecção mas da combinação e da apresentação convidativa. Há um paradoxo difícil de explicar no seu cinema. Temos uma grande multiplicidade de imagens, sucedendo-se numa cadência rápida, ou às vezes multiplicando-se num ecrã repartido, ou em algumas instalações juntando mais que um ecrã em simultâneo, como acontece aliás na exposição em permanência. Um dos filmes, exibidos na segunda sessão de curtas-metragens, intitula-se mesmo Múltiplas Imagens para 5 Projectores (12 min., 2017). Mas, por outro lado, cada imagem parece escolhida com grande cuidado e tem tudo menos a aparência da banalidade. Vemos em muitas delas uma significativa procura de beleza, ou uma longa composição, não sendo simples fruto de uma pesquisa documental. E o efeito não parece procurar estontear-nos. Pelo contrário mesmo se não foge de mostrar, por exemplo, horrores da guerra ou da violência, dir-se-ia que passa de umas a outras de uma forma macia ou até com sentido de humor ou da caricatura, como se fosse a linguagem dos sonhos em que as coisas podem deformar-se ou transformar-se, acentuar ou atenuar, até aos limites do pesadelo suportável. Há um efeito hipnótico que por outro lado sustenta uma pedagogia do ver que não obscurece a razão. O trabalho de Alexander Kluge situa-se num plano estético que lhe permite proclamar uma política dos sentimentos, precisamente o tema escolhido para o ciclo e a exposição.

Especial curiosidade despertou Amor Cego (24 min., 2001). É uma entrevista com Jean-Luc Godard, depois de Elogio do Amor, e a tradutora Ulrike Sprenger (em campo), e Alexander Kluge (off), dois cineastas de uma geração agora nos noventa anos, atraídos pela palavra e pela montagem quase caótica das imagens, herdeiros a seu modo de Eisenstein. Em Amor Cego há como que uma imagem em espelho. No entanto, o uso da câmara diferencia. Evita o efeito de espelho mágico. Separa o que vê e o que é visto? E similarmente uma pergunta não pede uma resposta como é usual, mas outra pergunta. A imagem demora-se sobre o rosto de Godard. Deixa ver diferentes emoções. Sem palavras. Há talvez o embaraço, a timidez, a (des)confiança, a hesitação, quantos não ditos, eventualmente sobreditos.

No mundo ocidental pós-freudiano talvez seja difícil entender (ouvir?) o que um pós-kantiano como Kluge pode querer dizer com a política dos sentimentos (e a sua ligação com a razão). Mas também, como diz Kluge a Godard, "os esquimós têm 180 expressões para neve e os gregos antigos tinham 60 expressões para o amarelo". Noutras línguas pode a mesma palavra (sentir) aplicar-se a sentimentos, emoções, dores, odores, e o que mais? Todo o pensamento é também uma questão de léxico?

Godard em resposta a uma pergunta sobre como poderia ser um filme sobre o amor (e ele tinha acabado Elogio do Amor) diz que a primeira parte seria dedicada aos esquimós, a segunda aos gregos antigos e por fim chegaria a alguém que sabe apenas uma expressão a designar o amor paixão. Ce n'est pas une image juste, c'est juste une image (e a tradução não é justamente a mesma coisa).

Kluge talvez esclareça bem a questão ao escrever em Crónica dos Sentimentos II (ed. CFB, 2021, pg. 85-86): "Há alguém que não se poupa a esforços. Mergulhou totalmente no seu trabalho. Concentra-se na produção de um objecto ou (se for médico) de outro homem. Este indivíduo, diz Immanuel Kant, existe objectivamente. É ele mesmo, senhor de todas as suas forças. Um outro, continua Kant, voltou-se intensamente para o seu Eu, para a sua actividade anímica. Sente a dor permanente no seu corpo, o ruído da sua natureza. Como está assim tão ocupado, não consegue ouvir bem. Este indivíduo não é subjectivamente activo, diz Kant, é antes um objecto. Todos os indivíduos práticos, prestáveis, sociais, capazes de razão são sempre subjectiva-e-objectivamente activos, conclui Kant em relação à figura tríplice do seu pensamento."

Em A Magia da Alma Obscurecida (48 min., 2007) Kluge (também off) com a ironia de muitos dos seus apontamentos, entrevista um suposto perito em demolições, e disserta sobre a teoria das ruínas dos nazis expressa em construções super-sólidas, por isso difíceis de demolir, mas nem por isso eternas. Recorde-se que o seu primeiro filme, com Peter Schamoni, foi Brutalidade em Pedra (12 min., 1961), exibido na primeira sessão de filmes curtos, e demolições são bem visíveis na paisagem urbana de Despedida de Ontem (1966) e No Perigo e Maior Angústia, O Caminho do Meio é o da Morte (1974), por exemplo.

De resto em Homenagem a Manoel de Oliveira (28 min., 2019, em contínuo na exposição) Alexander Kluge faz um excelente exercício de "como fazer com que as imagens comentem", citando um intertítulo de outro filme seu. Neste caso Kluge parte de algumas sequências de Os Canibais e "comenta-as" com cenas de diferentes óperas, cartazes de filmes de vampiros do período mudo e início do sonoro, de Murnau (Nosferatu) a Dreyer (Vampyr), e principalmente imagens suas de 95 Próteses de Verdun, numa leitura política do filme de Oliveira no corpo despedaçado, demolido, "morto", do Visconde de Aveleda na noite de núpcias.

A retrospectiva, e a exposição, encerrou-se com o muito estilulante Notícias da Antiguidade Ideológica Marx - Eisenstein - Capital (2008), precedida de uma inteligente e muito viva conferência de António Guerreiro. O filme de Alexander Kluge é um magnífico trabalho estético e teórico a partir do projecto nunca concretizado por Eisenstein de filmar O Capital e o mais surpreendente é que a inspiração de filmar um texto não fosse a da agit-prop da época, mas sim a da leitura de James Joyce da Odisseia no seu paradigmático Ulysses (curiosamente Eisenstein encontrou-se em Paris, com Joyce que vivia em França, para trabalhar no projecto no mesmo mês do crash de Wall Street em 1929 logo depois de se recompor do término extenuante de Outubro para o 10º aniversário da Revolução Russa, a que aliás o filme também dedica alguma atenção). Vale a pena atentar nos diversos materiais juntos na montagem de atracções de Kluge, no diálogo entre Alexander Kluge e outro importante pensador alemão da sua geração, Hans Magnus Enzensberger, ou na transcrição do curto (9 min.) de Tom Twyker, A Pessoa nas Coisas (Der Mensch im Ding), ao jeito de Corre, Lola, Corre a partir da imagem de uma mulher que corre, de um realizador nascido em 1965 e portanto de uma geração bem mais recente. Tudo isto ocorre no ano de outra grande crise do capitalismo em que Alexander Kluge dirá em entrevista ao Frankfurter Allgemein (22/10/2008): "Marx nasceu em 1818, cinco anos depois de Richard Wagner, num tempo em que havia escravidão e trabalho infantil. Tudo isso tinha sido eliminado e a jornada de oito horas conquistada. Em 1942 Marx teria 124 anos: aí temos Auschwitz. Se eu então tivesse que escolher entre trabalho infantil, escravidão e Auschwitz, não escolheria o progresso. Há também um progresso do mal. A evolução não se dá necessariamente em direcção ao esclarecimento".

 

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