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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Sapatos Pretos - João Canijo (1998)

Pulp Fiction com coentros

 

João Canijo esteve um longo período sem filmar, depois de "Três menos eu", filme de estreia e de certa forma prometedor no que respeita a toda uma nova geração que já não tinha ligações directas com o cinema novo dos anos sessenta ou com os "anos Gulbenkian" do imediatamente antes do 25 de Abril, que se repercutiu no posterior cinema português por quase duas décadas, e do menos interessante, e já a fazer temer a opção actual, "A filha da mãe".No intervalo Canijo fez alguns trabalhos para a televisão, de um fracassado "Alentejo sem lei" até uma rotineira mas minimamente certa "sit-com" de importação.Ao voltar ao cinema Canijo parece ter poucas ideias e o que mais ressalta do filme é o tratamento formal, mesmo se agressivo e pouco convencional, e os comentários frequentes de uma inspiração à Tarantino ou à Almodovar, por detrás de uma história real de crime, reelaborada naturalmente numa ficção (aí a chancela do real e dos problemas actuais, aliados a uma espécie de fórmula sexo e crime parecem exercer uma certa sedução no espectador português , se compararmos com o recente "Tentação" e o tipo de promoção e resposta de bilheteira). Repare-se que esse caminho inclui também Joaquim Leitão, cineasta de uma mesma geração, e a própria escolha da actriz Ana Burstoff reencaminha para o excelente papel secundário em "Adão e Eva" e a presença também em "Tentação".A temática é portuguesa e cauciona-se pela própria inspiração em casos reais, enquanto o tratamento parece ir buscar modelos importados e, aliás, nem sempre bem digeridos. A partir de uma história de crime e duma certa narrativa desde as primeiras cenas desenvolvida com descontinuidades, poder-se-ia dizer que, de certa maneira, estaríamos perante uma "pulp fiction com coentros", o que não surpreende em Canijo, que em "Alentejo sem lei" também não andou muito longe das referências do "western- spaghetti".Claro que não é a mistura de referências que poderia comprometer o filme. Se "Sapatos pretos" não funciona é porque Canijo não soube trabalhar as soluções que o seu material ficcional requeria.Um pouco à Tarantino, Canijo recusa a narrativa clássica como abordagem da história de uma mulher no Alentejo que assassina o marido. Mas o problema é que no cinema de Tarantino convocam-se todo um conjunto de ingredientes, que vão das memórias cinematográficas e do jogo entre as formas como referentes de determinadas realidades que assim surgem com um acrescento em relação aos limites do verosímil cinematográfico, e investe-se no tratamento dramático que pode fazer uma sequência valer pelos dilemas que são encenados e pela sua intensidade independentemente da realidade a que podem fazer referência (veja-se "Cães danados" e mesmo em "Pulp fiction") Em "Sapatos pretos", porém, desarticulada a narrativa clássica não há nada a não ser o puro jogo de cores e de efeitos, de uma imagem onde domina o vermelho e de um contraste que se obtem a partir do inicial registo em video e não em película e de uma pesquisa formal sobre os registos possíveis através de manipulações técnicas. É duvidoso que a opção final tenha tido uma real intencionalidade expressiva, o que, aliás, se pode sustentar na redundância do filme a este respeito (ampliando limitações já visíveis em "A filha da mãe" e também no tratamento da côr, aí mais justificada pela profissão do protagonista como pintor).Um crime como ponto de partida ficcional, e uma história em que os protagonistas são mais sintomáticos de algo que se expressa neles que verdadeiros actores da sua tragédia, poderia ser a linha de desenvolvimento que seduziu Canijo (e lembremos que Canijo filmara o próprio Paulo Rocha em "Três menos eu", e que "Verdes anos" de Paulo Rocha era o filme emblemático dessa postura no "cinema novo" dos anos sessenta, que hoje podemos compreender muito melhor) mas a verdade é que "Sapatos pretos" fica definitivamente àquem de qualquer pretensão desse tipo, porque lhe faltou o discernimento ou pura e simplesmente o esforço que permitisse encontrar soluções fílmicas para essa leitura.Assim é um filme em que tudo se parece estabelecer num primeiro grau onde falta a reflexão, não no mundo ficcional mas na própria elaboração fílmica.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias 27/4/1998

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