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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Sem Sombra De Pecado - José Fonseca E Costa (1992)

CRÓNICA DA TRANQUILIDADE APARENTE

 

No percurso criador de José Fonseca e Costa, SEM SOMBRA DE PECADO é provavelmente o sinal da maturidade. Baseado num conto de David Mourão Ferreira intitulado «E aos costumes disse nada» e incluído no livro «Gaivotas em terra», SEM SOMBRA DE PECADO é uma história curiosa narrado com evidente gozo sem cair, no entanto, na sem cerimónia de alguns simples exercícios narrativos.

Por detrás da anedota do misterioso jogo de sedução que Maria da Luz (Vlctoria Abril) exerce sobre o ingénuo aspirante Henrique Andrade (Mário Viegas), pontuado por oportunos apontamentos do ambiente lisboeta dos anos quarenta e da vida de um quartel num tempo de neutralidade face a uma guerra distante que, no entanto, marca visivelmente o quotidiano, surge nos uma série de referências que facilmente identificam o cinema de Fonseca e Costa, não tanto pelo estilo visual ou narrativo, mas principalmente pelos símbolos e fantasmas a que frequentemente recorre.

No entanto SEM SOMBRA DE PECADO constrói-se numa aparente tranquilidade como se nada de importante se tratasse, sem quaisquer rituais de erudição cinematográfico ou álibis de chancela cultural.

Tal como Mana da Luz se exprime numa naturalidade «sem sombra de pecado» utilizando o verso do fado do Frederico de Brito «O que sobrou de um queixume» que Carlos do Carmo interpreta no filme, também Fonseca e Costa pretende a mesma pureza ambígua, se assim se pode dizer, sem nada que seja pesado (ou pensado) mas onde uma outra dimensão se pode adivinhar sem dificuldade.

É curioso verificar que sendo constante no seu cinema o tema da clandestinidade onde o oculto se revela de alguma maneira numa forma cifrada, seja na acção política (em O Recado, Os Demónios de Alcácer Quibir e Kilas, O Mau da fita) ou na sedução amorosa (em SEM SOMBRA DE PECADO) seja ainda nos espaços de representação (os malteses de Os Demónlos de Alcácer Quibir, a revisto e o teatro de Kilas e SEM SOM BRA DE PECADO) ou nos fantasmas dos imaginários pessoais e colectivos (o palácio de D. Gonçalo em Os Demónios de Alcácer Quibir», a casa dos tios de Ana em Kilas ou a de Maria da Luz em SEM SOMBRA DE PECADO), José Fonseca e Costa joga com esses vários códigos que emergem dos espaços ou dos grupos de personagens contidos na narrativa, sem contaminar os códigos unívocos da própria expressão cinematográfica. Ou seja, o cinema de Fonseca e Costa embora consciente de um complexo jogo de sinais em que a realidade e a fantasia se interpenetram joga na conservação do modelo narrativa convencional como quadro de referencia necessário ao jogo cruzado que o argumento estabelece ao passo que outros cineastas portugueses como Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, ou António-Pedro Vasconcelos de umo ou de outra maneira elaboram o seu cinema num nível metalinguística que estende esse jogo aos próprios códigos do cinema.

Os filmes de Fonseca e Costa jogam assim num terreno mais familiar ao espectador habituado pelo cinema corrente, aparentemente sem surpresas e exigindo uma leitura mais atenta ou a conotaçáo com obras anteriores para que seja possível extrair um sentido mais global. Essa será aliás a sua credencial no sucesso junto do público e o seu desafio ao espectador mais perspicaz.

SEM SOMBRA DE PECADO é um filme que sabe construir de um modo excelente o ambiente visual até se tivermos em conta as dificuldades do cinema de reconstituição histórica entre nós, sendo de notar que pelo primeira vez Fonseca e Costa recorre a uma inspiração literária que lhe é exterior e inclusivamente abandona as referências históricas recentes que caracterizam os seus três filmes  anteriores  (a pseudoliberalização marcelista em O Recado, a descolonização em Os Demónios de Alcácer Quibir, e a recuperação eanista em Kilas).

Como Sá Caetano (As Ruínas no Interior) e Luís Filipe Rocha (Cerromaior) cineastas com quem aliás teve significativas afinidades, Fonseca e Costa vai sob o pretexto da novela de David Mourão Ferreira retratar uma certa época de salazarismo, contemporânea da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial, compondo um esboço lisboeta que tem fascinado Fonseca e Costa, inclusivamente na ligação com o cinema popular da época já citada em Kilas e do qual parece ter saído a sequência do fado. A voz de Salazar no rádio não é apenas um apontamento do colorido da época, já que tudo se processa no duplo registo de uma história de amor e de um crime que é suposto desvendar-se. Habilidosamente o filme vai colocando o discurso de Maria da Luz num terreno ambíguo entre verdade e ilusão de tal forma que no final a identidade de um segundo modo, a explicação da sua morte e o estranho contexto em que o protagonista é envolvido, tendem a desenhar-se numa morte simbólica onde o trajo civil do defunto revelo a verdadeira identidade escondida na aparência das fardas, numa perspectiva que não andaria longe de Brandos Costumes de Seixas Santos.

O mérito e o sentido de humor do filme residem aliás na frustração da expectativa habilmente criada através de uma doce tranquilidade que mais não exige que uma solução simples para uma pequena história onde os capitães caem em manobras e não na guerra, abatidos pelas cólicas e não pelo fogo inimigo, e os aspirantes ganham as promoções nos campos de batalha do amor.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/2/1983

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