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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Solo de Violino, Amor e Dedinhos do Pé e Uma Vida Normal

UM CINEMA NORMAL

 

A. Roma Torres, A Grande Ilusão, 17, Março/1995, pgs. 49-52

 

 

 

 

A NARRATIVA REGRESSA 

 

O cinema fez o seu caminho do registo para a narrativa ao mesmo tempo que a pintura deixava de lado a figuração, a música questionava a harmonia, o romance libertava-se do enredo e o teatro substituía o drama pelo absurdo.

 

Na realidade o caminhar do século tornava mais real o retrato de Guernica que a beleza idealizada da Gioconda (como paradigmaticamente Manoel de Oliveira apontava em O Meu Caso, cf. entrevista em A Grande Ilusão, nº 7).

 

A grande "revolução" de um cinema que perde a sua ingenuidade e se questiona sobre a própria impossibilidade de narrar chamou-se Godard, mas hoje um dos filhos dos Cahiers como Olivier Assayas confessar-nos-ia, na apresentação de Paris Desperta no Porto, que "do naufrágio do Godard só nos podemos salvar agarrando-nos ao argumento". 

 

Isto é, em todos os domínios da criação artística os fenómenos são transitórios e o futuro vai sempre para outras paragens.

 

A "escola portuguesa", como João Bénard da Costa (Histórias do Cinema, ed. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1991) designa um conjunto de autores como Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António Reis e Margarida Cordeiro, João César Monteiro, João Botelho, João Mário Grilo, etc. ganhou o seu prestígio pela criação de um "clima", de um "tempo", mais ancorado numa elaboração plástica do que no plano da narrativa.

 

Mas mesmo assim é a "cena da História" que Augusto M. Seabra ("Les regards du cinéma portugais", Cinéma, nº 25, Bruxelles, 1989) vai considerar o elemento identificador do cinema português.

 

Os ingleses distinguem story de history e entre nós começa a generalizar-se o brasileirismo estória, mas no fundo o que este século também testemunhou é que as histórias e a História (num trocadilho que Bénard da Costa levou ao título do citado livro sobre o cinema português) se submetem à narrativa e à sua génese subjectiva (há quem venha por isso falar de herstory, como Alan Parry, A universe of stories, Family Process, 30, 1991), adaptando um paradigma narrativo na prática psicoterápica).

 

O fim do século surge-nos, no entanto, com o obscurecimento do valor da palavra, com o ocaso das ideologias e o triunfo de um jornalismo televisual em que o quotidiano já não se narra, é mostrado em bruto e quase não se sabe entender.

 

Entre o retorno da religião e a ausência de um discurso (de uma teologia) nos fundamentalismos, e a breve euforia de um futuro liberto das categorias políticas que pareciam já uma segunda natureza, e portanto uma realidade objectiva exterior ao homem, o mundo já parece a alguns parado "num ponto terminal da evolução ideológica da humanidade que seria uma sábia combinação da democracia e do capitalismo. "O fim da História" (Francis Fukuyama) é talvez a impossibilidade da narrativa voltada para ofuturo.

 

Dantes desconfiávamos da ideologia dominante que se infiltrava mesmo onde mal se suspeitava. Doravante temos que nos precaver da não-ideologia dominante.

 

Por isso, depois do pós-modernismo (da estética da Negação), talvez seja o tempo de re-storying e o próprio Godard que se interrogava sobre a impossibilidade do discurso no cinema (Ici et Ailleurs) pretende agora fazer Histoir(es) du Cinéma (atenção ao plural deste cineasta que em 1980 dizia "j'existe plus en tant qu'image qu'en tant qu'être réel, puisque ma seule vie c'est d'en faire"). Talvez nas desconstruções e reconstruções do seu percurso o cinema tenha sido a forma de expressão artística que mais se aproxima daquilo que em termos epistemológicos Paul Watzalawick designou por "realidade inventada" (título de um conjunto de textos que editou em 1984 como "contribuições ao construtivismo").

 

Neste tempo de reavaliações talvez se deva voltar a ler Gramsci, na sua crítica do Manuel Populaire de Boukharine, de onde derivou uma espécie de positivismo marxista, sobre "a realidade do Mundo exterior" ("nós conhecemos a realidade apenas em relação ao homem, e como a realidade é devir histórico, a consciência como a realidade são igualmente um devir, e a objectividade também ela é um devir", Textes, Editions Sociales, Paris, 1983), ou Adorno ("a arte é a verdade histórico-filosófica do solipsismo falso em si", Théorie Esthétique, ed. Klincksieck, 1974).

 

HISTÓRIAS PESSOAIS 

 

A biografia é talvez o campo onde a narrativa mais podia cilidir com uma certa necessidade de objectividade já que a personagem não é uma pura criação do autor. Talvez por isso estamos frequentemente perante versões relativamente reverenciais , a que frequentemente o público não adere, como seriam os casos de Chaplin de Richard Attenborough, ou Malcolm X de Spike Lee, ou Hoffa de Danny de Vito. Mas há filmes em que o autor desafia a visão comum do personagem real que toma por tema, sem contudo invadir pela fantasia os dados conhecidos da realidade.

 

Será o caso, por exemplo, de Van Gogh de Maurice Pialat, num terreno que não é o da compreensibilidade que reduz, nem o da estranheza que exclui. Pialat evita a patografia que conduz a um diagnóstico médico, mas também não idealiza o comportamento do protagonista como provocador ou revolucionário. Van Gogh, no olhar de Pialat, um pouco como o Cristo de Scorsese, é um personagem simples, habitado por uma força que o destrói e o transcende, a que porventura seria tentador chamar de doença, mas hoje se reconhece como génio.

 

À escala portuguesa a biografia não tem exercido uma grande sedução. O Camilo de O Dia do Desespero (Oliveira), o Wenceslau de Moraes de A Ilha dos Amores (Rocha), ou o Fernando Pessoa ou o Mário Sá-Carneiro de Conversa Acabada (Botelho) são verdadeiramente espectros fúnebres onde o rasto literário ou testemunhal impede a história.

 

Monique Rutler gira numa órbita diferente da "escola portuguesa" embora tenha assinado a montagem de Francisca. A sua abordagem da biografia em Solo de Violino podia portanto ter tido outras liberdades. O filme aborda o caso verídico de Adelaide Coelho da Cunha (Fernanda Lapa), filha do fundador do Diário de Notícias, que abandonou o marido para viver com o antigo motorista e é por esse motivo perseguida e internada, contra a vontade, num hospital psiquiátrico. A situação ocorre em 1918, no período da 1ª República e do final da Grande Guerra, imediatamente antes do consulado sidonista (e há no filme referências a sublevações monárquicas).

 

Monique Rutler, um pouco já em Velhos São os Trapos, mas mais significativamente em Jogo de Mão, exibe uma postura ideológica que se pode designar por feminista. Ela é, aliás, uma das poucas entradas do cinema português no Women in Film - An International Guide, de Annette Kuhn e Susannah Radstone (ed. Fawcet Columbine, New York, 1990). Isso reflecte-se na forma como retrata Adelaide em Solo de Violino. O título refere-se a um soneto do marido que Adelaide recita em reuniões sociais mas Adelaide no filme tem verdadeiramente o nespaço de um "solo", o que em vez de iluminar a temática da libertação feminina, torna a situação dramaticamente pouco convincente, de tal forma os outros personagens ou não existem ou são extremamente lineares.

 

O filme não se centra apenas no caso de amor socialmente reprimido, mas aborda também o abuso económico, com a venda do jornal que lhe pertencia, feita pelo marido, sustentado em duvidosos pareceres de eminentes psiquiatras da época como Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid. Tal como o filme retrata parece evidente que não se trata de uma perturbação mental embora o comportamento incomum e a paixão plenamente assumida apareça aos olhos do senso comum como uma loucura. Solo de Violino prende-se talvez demasiado aos factos, aos documentos, aos diálogos didácticos, aos pormenores realistas - como a idade da personagem (a opção por Farnanda Lapa não é talvez a que funciona melhor em cinema), a fisionomia do marido, a syrdez de Magalhães Lemos, à época director do Hospital Conde de Ferreira onde Adelaide esteve internada no Porto -, tudo isso em detrimento da elaboração expressiva e de uma maior aproximação à personagem. Mesmo assim a cena da aproximação entre Adelaide e o motorista (André Gago), com um travelling circular em torno dos personagens, ou a cena da praia que mostra a crise da personagem, o seu momento de viragem em que se destaca do retrato de conjunto, acabam por ter alguma expressividade, embora o argumento não chegue nunca a dar a dimensão extraordinária da personagem e de um amor que a opõe à sociedade em que se insere. Note-se no entanto que em Solo de Violino Monique Rutler ultrapassa o cinema incipiente de Velhos São os Trapos ou dos episódios de Jogo de Mão, e parece afirmar-se capaz de mais altos vôos.

 


A ORIENTE 

 

Os territórios exóticos e longíquos exercem um natural fascínio nos contadores de histórias. A China e, pelo lado português, Macau têm precisamente esse fascínio. E se Luís Filipe Rocha filma Amor e Dedinhos de Pé depois de um período em que viveu em Macau como director de programas da TDM, a novela de Henrique de Senna Fernandes aponta para a fantasia e o mito, desde logo associados à entrada em cena de Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida).

 

Fonseca e Costa tem anunciado, aliás, o projecto de adaptar O Senhor Ventura, escrito por Miguel Torga, localizado num Macau que não conheceu, "esquecendo - como diz no prefácio - as leis da gravidade".

 

Luís Filipe Rocha parece não ter querido esquecer totalmente as leis da gravidade, um pouco como Monique Rutler em Solo de Violino. Amor e Dedinhos de Pé tem em Vitorina (Ana Torrent) a narradora privilegiada de um encontro improvável. Vitorina é no início a "menina feia" que nenhum jovem convida para dançar nas festas de sociedade e ela própria se isola numa espécie de exílio interior. Francisco Frontaria será também exilado, para fora da "cidade cristã", até ser recolhido por Vitorina num estado de degradação física. De certa maneira é através da ruptura com o exterior que os personagens se descobrem e se "reconhecem".

 

Mas o filme acompanha preferencialmente Francisco Frontaria e deixa Vitorina numa relativa penumbra. Vitorina Vidal mereceria uma outra atenção num conjunto que privilegia os personagens masculinos extremados que pontuam a sua feminilidade escondida - o pai (João d'Ávila), distante e em certo sentido frágil, o avô materno (Omero Antonnetti), de uma virilidade exibicionista complementar das tias solteironas que lhe moldam o desempenho social, o "padrinho" (Jean-Pierre Cassel), como abertura a um outro masculino em que um Francisco outro, debilitado, se incluirá.

 

O exílio de Francisco no Bairro Chinês de certa maneira desvia a linha narrativa do filme, e o próprio actor, Joaquim de Almeida, compõe o personagem de uma forma que fica aquém do que se esperaria da sua bem sucedida carreira cinematográfica. Francisco Frontaria é um personagem de planos de conjunto e gestos teatrais que convive mal com o grande plano e a proximidade da câmara que daria de certo modo a verdade do personagem para lá da frontaria, podemos dizer, e isso é surpreendente precisamente num actor que tem uma excelente, e rara entre nós, relação com a câmara, bastante aprendida no contexto do cinema americano. Aliás é a "presença" dos personagens que falta no filme, excepção feita a Jean-Pierre Cassel (uma vez mais em filmes portugueses depois de Aqui d'El-Rei e Chá Forte com Limão), aliás muito bem dobrado por João Lourenço.


O MUNDO DA PUBLICIDADE

 

A publicidade é hoje em dia seriamente dependente do argumento, mais do que do slogan. Cada anúncio televisivo ou mesmo jornalístico encerra frequentemente uma história.

 

Uma Vida Normal, de Joaquim Leitão, parte dessa referência e transporta-a para aquilo que envolve o personagem, técnico de publicidade numa vida alucinante entre cápsulas estimulantes e comprimidos para dormir. É a cidade, o quotidiano agitado de pequenos problemas, um acidente cardíaco, um desastre de estrada, uma tentativa de suicídio, um divórcio em curso: o itinerário opressivo que só se resolve na paragem final forçada.

 

"Três é a conta que Deus fez", diz Paula, prostituta (Teresa Roby), a terceira nos dois dias agitados de Miguel (Joaquim de Almeida) e este terceiro filme de Joaquim Leitão parece superar as limitações da fórmula estereotipada dos dois filmes precedentes, Duma Vez Por Todas e Ao Fim da Noite. O filme recusa a visão melancólica típica do fado português, a que o tema se prestava e uma cena em casa de fados quase impunha, e opta por uma regra de ouro do cinema americano: recusar a retórica e transformar em acção os conflitos dramáticos que põem em jogo os personagens, mesmo se também se estrutura num flashback e na narração off, de um monólogo perante o barman (Vítor Norte).

 

Joaquim de Almeida, precisamente, tem em Uma Vida Normal, talvez pela primeira vez no cinema português, todo o espaço para um desempenho mais solto e seguro, a que aliás Vítor Norte, Anamar e Margarida Marinho, as outras duas Paulas, principalmente dão uma excelente réplica. É mesmo nos actores que o filme segura, ou não, a agilidade narrativa de algumas cenas: positiva a cena de amor amarrado à cama e o síndrome de Bobbit avant la lettre, na ameaça castradora da serra eléctrica; negativa a da esquadra de polícia após uma não intencional agressão à esposa e um confronto físico com o seu advogado e amante.

 

Joaquim Leitão afirma plenamente a viabilidade dum cinema português normal mas não medíocre, porém infelizmente falha onde de certa maneira não poderia, ou seja, na resolução dramática que faz nascer do quotidiano os anúncios que o protagonista tem que apresentar. Onde se espera a recriação quase mágica surge o pouco imaginativo lugar-comum, na banalidade dos slogans, e do tratamento cinematográfico, tanto mais surpreendente quanto o cinema de Joaquim Leitão se estrutura bastante numa estética da publicidade. E o conteúdo dos anúncios (a sorte, o perfume, os seguros) permitia uma dimensão de certa forma simbólica.

 

A reflexão que Solo de Violino, Amor e Dedinhos de Pé e Uma Vida Normal permitem é que se se pode contrapor um "cinema de argumento" a um "cinema de autor", ele certamente não dispensa a criatividade e a elaboração narrativa. Contar uma história é sempre uma maneira de contar e o ponto de vista, subjectivo, é o do próprio contador-cineasta. Aliás esta dificuldade, no cinema português, traduz-se frequentemente pela introdução, como que objectiva, do personagem-narrador. A solução não respeita apenas à técnica de argumento mas principalmente ao investimento criativo.

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