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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Tempos Difíceis - João Botelho (1988)

TEMPO DE RESISTÊNCIA

  

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 7, Março de 1989 

 


João Botelho partiu para a cinematização de Hard Times com duas ideias precisas. A primeira seria a de que Charles Dickens seria uma espécie de protolinguagem do cinema. A suportá-lo havia os textos de Griffith e Eisenstein, com a autoridade de quem tinha o nome inequivocamente associado ao estabelecimento do cinema como linguagem. A segunda referia-se à ideologia de um certo pragmatismo social, base da teoria educativa de Tomás Cremalheira (Gradgind no original de Dickens) que afinal não traria a suposta felicidade. Onde está a felicidade? - é a interrogação camiliana que decorre das cenas finais do filme. O que Botelho pretende pôr em evidência é que essa espécie de conformismo não é apenas característica da época da revolução industrial em que Dickens escreveu, mas poderá ajustar-se por exemplo a um tempo como o actual na sociedade portuguesa.

Por outro lado Tempos Difíceis constitui em certo sentido um aprofundamento do tema de Um Adeus Português. Em A Grande Ilusão nº 5, intitulámos o comentário ao filme precedente de João Botelho O Português e o Tempo, e de facto Um Adeus Português era um filme sobre o conformismo, sobe o tempo suspenso, incapaz de fazer história, de ultrapassar as perdas, sobre o anacronismo muito evidente na protagonista Laura (Maria Cabral). Mas aparentemente João Botelho adoptava acriticamente esse ponto de vista fatalista ("a mim fascina-me muito mais a derrota" dizia João Botelho em entrevista também publicada em A Grande Ilusão nº 5). Laura e Alexandre de Um Adeus Português prolongam-se de certa maneira em Luísa e Tomazinho, também irmãos em Tempos Difíceis (e, aliás, Ruy Furtado e Isabel de Castro são os pais em ambos os filmes). Mas desta vez há um contraponto que é Cecília, refratária à ideologia de Cremalheira, logo na primeira sequência da escola e símbolo de felicidade nas cenas finais. Cecília é a imagem de um tempo de resistência surda, subterrânea, pouco espectacular em termos dramáticos.

Ao nível da linguagem Tempos Difíceis usa os planos de pormenor num registo que vai do cinema mudo a Bresson, ou os planos de conjunto num estilo que evoca Fritz Lang (de Metropolis, por exemplo) ou Orson Welles. Tudo isto quer dizer um levantamento dos processos cinematográficos que divergem claramente da produção standard de Hollywood. E isto apesar das características narrativas do texto de Dickens e da liberdade dada aos intérpretes que recriam os personagens com um entusiasmo particularmente visível em Eunice Muñoz (provavelmente o seu melhor papel em cinema) e Henrique Viana e raro no estilo distanciado do cinema português.

Mas uma outra opção estética parece bastante relevante: a elaboração dos cenários. Tempos Difíceis cria realmente um espaço/tempo que só pode existir na ficção, ambiente não realista que habitualmente identificamos com as regras do cinema de ficção científica (podemos pensar, por exemplo, na adaptação cinematográfica de 1984 de Orwell). A indefinição do tempo (o século passado em Inglaterra, o início do século da República ao fascismo, ou o tempo actual - e porque não o futuro?), o anacronismo é um referencial fundamental na adaptação de João Botelho que poderíamos qualificar de estrutural, na medida em que aproveita basicamente o esqueleto do romance de Dickens despindo-o de toda a "ganga", como repetidamente tem afirmado João Botelho.

Isso tem também um equivalente na narrativa que recorre a elipses habilidosas e no uso da banda sonora que sublinha ou pontua de forma expedita a acção ou comenta ironicamente por vezes a narração "off".

O que interessa mais que discutir o ponto de vista do autor é pôr em relevo a coerência do seu trabalho estético e a adequação ao texto de Dickens que se propôs adaptar.

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