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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Tentação - Joaquim Leitão (1998)

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Num dos primeiros diálogos entre o padre António (Joaquim de Almeida) e Lena (Cristina Câmara) quando ele começa a dar-lhe aulas de natação diz-lhe que se ela for ao fundo irá lá para a buscar. Não se trata claro apenas da hipótese de afogamento, mas duma pista que em última análise vai explicar a tentação do padre, envolvido no final sentimentalmente mas também procurando salvá-la (função para que remete a sua missão de sacerdote) do mundo da droga."Tentação" de Joaquim Leitão foca assim uma temática obviamente relevante, mas a questão de saber se vai ao fundo pode colocar-se também ao próprio filme e até num duplo sentido: se aprofunda suficientemente o tema por que se aventura e se não se afunda no que respeita ao resultado final.É sabido que "Tentação" se inspira num caso real, embora naturalmente associando elementos que retiram o filme do objectivo de ser fiel aos factos e às personagens reais. Por outro lado, o produtor Tino Navarro está apostado numa lógica de produção que conquiste os espectadores através de formas narrativas acessíveis e de uma boa promoção, já com os precedentes exemplos de "Adão e Eva", também de Joaquim Leitão, e de "Adeus,pai" de Luís Filipe Rocha, mas sem de certa maneira alienar, honra lhe seja feita, objectivos temáticos de notória relevância. Mas, apesar de tudo, não se pode dizer que esta via, em si defensável, tenha já encontrado o melhor equilíbrio desejável e seria bom que o produtor e os cineastas mais ligados a estes projectos não deixassem de se questionar, apesar dos inequívocos êxitos de bilheteira que justamente têm vindo a conseguir.Apesar das aparências "Tentação" não é um filme fácil embora temas como o sacerdócio católico e o celibato ou a toxicodependência tenham à partida um impacto que garante o sucesso.A história do filme é a dum padre numa aldeia minhota que se preocupa com as suas "ovelhas" e nessa via acaba perigosamente por se envolver na tentação (da carne ou da droga?). Há um mundo social que o filme retrata, na toxicodependente que sai da prisão, no mundo violento associado à droga, nos conflitos étnicos particularmente com os ciganos que se associam à droga, mas onde se espelham generalizações injustas baseadas em preconceitos racistas, e também na corrupção nos pequenos meios que constitui uma faceta aparentemente mais civilizada de um mundo onde o crime, o verdadeiro crime não é o dos que se injectam heroína ou transgridem as leis do celibato. E por outro lado a construção dramática do filme funciona com relativa desenvoltura, contando a história numa narrativa construída de uma forma eficaz.No entanto a grande debilidade do filme é que os personagens não existem, são bonecos ao serviço de tudo o mais que lá está. E isto apesar da experiência de Joaquim de Almeida que defende bem o papel ou da intuição de Diogo Infante, num pequeno papel do vilão, o "dealer" com quem Lena vivera antes de ser presa. De certa maneira é o contrário do que diz o padre António quando assume as suas culpas perante um grupo de paroquianos seus que o identificam no território dos ciganos onde ele, já dependente, fôra comprar droga. Os paroquianos, organizados em milícia popular (as referências de actualidade do tema são evidentes) pretendem agredir os ciganos, mas o padre António procura fazer-lhes ver que não se pode generalizar e os ciganos não são todos iguais, se um vende droga os outros não podem ser responsabilizados por isso. Os homens não são todos iguais e cada um tem o seu valor, identidade e responsabilidade próprias.Mas "Tentação" acaba por trair essa mesma concepção na frágil construção dos personagens. Se virmos nenhum dos personagens tem uma história própria, uma existência que não seja funcionalizada para além da narrativa. São estereótipos, seja o padre, a toxicodependente, ou mesmo qualquer dos outros personagens. Nenhum deles tem uma existência singular, eles são tipos iguais a todos os outros e que nunca surpreendem a imagem comum que toda a gente tem. Daí que os conflitos sejam todos eles mais externos que internos, já que essa dimensão precisaria de personagens com história própria. E o protagonista, por exemplo, é sempre visto apenas pelo lado da sua função social, não se questionando face às questões da fé ou das suas convicções.E não seria preciso fazer um filme religioso ou com preocupações metafísicas para inclusivamente filmar o padre no exercício das suas funções litúrgicas por exemplo (se excluirmos a confissão, que é sempre um elemento útil à própria construção narrativa (como aliás as cenas de tribunal, com que o filme se resolve de um ponto de vista dramático)."Tentação" é o quinto filme de ficção de Joaquim Leitão, se excluirmos os trabalhos para a televisão) e o realizador já deu provas de que sabe construir uma história com um argumento mais ou menos feliz e resiste com alguma dignidade à pressão do trabalho industrial com prazos e objectivos promocionais muito bem definidos. "Uma vida normal", infelizmente o filme que ao que creio fez pior bilheteira, continua a ser o melhor exemplo de equilíbrio na sua filmografia, entre algum sentido crítico e a vontade de compromisso com o que pode ser o gosto generalizado ou as fantasias dos modelos do cinema importado. Precisa agora de ter uma oportunidade de fazer um filme, mais pensado e onde se possam prolongar preocupações que, embora de uma forma discreta, percorrem todos os seus filmes. Sob pena de eventualmente se ir especializando numa fórmula que pareça garantir o sucesso repetido. Mas é aí que muitas vezes que se perde o próprio público.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 6/1/1998

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