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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Trio Em Mi Bemol - Rita Azevedo Gomes

AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE OU ELE, ELA E MOZART

António Roma Torres, in Ípsilon - Público, 16/12/2022


Ele é Paul e está em casa. Ela, Adélia, vai e vem. O nome é português e a actriz também. E os parceiros, de novas relações depois de ter deixado Paul, também têm nomes portugueses ao contrário do original francês de Eric Rohmer que Rita Azevedo Gomes até traduzira nas versões mais precoces do guião. Mas em cena ela fala sempre francês. Rita Durão não é fluente nessa língua, mas a aplicação em decorar o texto, paradoxalmente presente em supostos intervalos da rodagem, permitiu dispensar qualquer dobragem. A falta de fluência até não importa ou parece intencional acentuando a intermitência do texto e menos a continuidade psicológica da relação entre eles. A falha, como quando Paul lhe corrige o reproche - uma simples vogal trocada separa curiosamente reprovação de aproximação - é propositadamente mantida na montagem final, num princípio de incerteza que domina a progressão do filme, também oliveiriano e agustiniano, para citar referências centrais do universo da realizadora.

De repente, dissonante, ela diz, em português, "leva-me a um concerto". E a música, já presente no título, é outro vértice do triângulo, nesta geometria rohmeriana, mas também mozartiana, a evocar talvez definitivamente Ma Nuit Chez Maud, o melhor filme do realizador francês, que antes fora líder dos Cahiers du Cinéma de capa amarela, cronologicamente entre os reinados de Bazin e de Rivette.

Este dueto com terceiro ausente assenta naquilo que talvez Rita Azevedo Gomes acredite ser a própria essência do cinema: a metamorfose. Dueto na forma original de Rohmer - e a realizadora não esconde que antes de mais quer filmar o texto, embora ele seja uma parte que com repetições e o filme dentro do filme acaba por durar cerca de uma hora mais - mas torna-se com Jorge, o realizador espanhol, sempre um trio, ou com Mariana, a assistente também espanhola, um quarteto, e talvez se possa imaginar sucessivamente até ao infinito, embora a realidade tenha sempre um limite com que a própria arquitectura de Siza Vieira se debate, e nomeadamente na casa de Moledo do Minho (Caminha) onde o filme se passa, ou melhor, ganha existência.

Assim ele é - pour l'instant, palavras repetidas enfaticamente nos diálogos iniciais do filme - Pierre Léon, actor de nome francês mas origem russa, e principalmente co-realizador, do anterior filme de Rita Azevedo Gomes, Danças Macabras, Esqueletos e Outras Fantasias, ainda inédito na exibição comercial em Portugal, "um filme a seis mãos", "investigação em forma de conversa e passeio entre Paris e Portugal", com o escritor Jean Louis Schefer (Festival Internacional de Marselha, 2019), estado mais recente de anteriores correspondências de Rita Azevedo Gomes, as propriamente ditas de Sophia e Jorge de Sena em filme de 2016, ou os diálogos de Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa em A 15ª Pedra.

Ele é Ado Arrieta, outras vezes com dois tês, ou Adolfo, Udolfo, e mesmo Adolpho, o "realizador de culto" madrileno, mas no passado residente em França, com quem Rita Azevedo Gomes  se correspondeu enquanto programadora da Cinemateca Portuguesa, que foi até há pouco tempo, para preparar um ciclo sobre a sua obra, finalmente concretizado de 1 a 9 de Junho de 2022, e que ela convidara em plena pandemia, assim o tirando de um confinamento em Madrid para ser, com larga margem de improvisação, o realizador apenas esboçado no guião sucessivas vezes apresentado aos concursos do ICA sem sucesso.

Ele é, claro, Eric Rohmer, que se chamou de nascimento Maurice Schérer e apenas quatro anos depois de iniciar a colaboração no nº 3 dos Cahiers du Cinéma passou a assinar com o pseudónimo, pelo qual ficou conhecido como cineasta, sendo proverbial que a própria mãe morreu anos mais tarde já adiantada a carreira do realizador sem ter sabido que o filho era um famoso cineasta, numa separação da vida pública e privada que ele muito prezava. Talvez fiel a isso Rita Azevedo Gomes toma-o à letra, ou seja, pelo texto, tendo evitado até conhecer a versão por ele encenada no teatro Renaud Barrault em 1988 e registada em vídeo com realização de Michel Vuillermer, disponível no Youtube - houve em 1993 uma outra encenação teatral em Madrid e depois em Barcelona, feita por Fernando Trueba que também assina o registo videográfico, por sinal imediatamente a seguir a Belle Époque, seu mais conhecido filme, uma co-produção de António Cunha Telles, segundo o IMdb não creditada, vencedora do oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1994. O texto de Rohmer, única experiência sua em teatro, tinha inicialmente sido pensado como um quinto episódio do seu pouco conhecido As Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle.

Mas ele é ainda, de justiça e decompondo em duplas o aparente triângulo, Mozart, pelo trio para clarinete, violeta e piano em Mi Bemol, composto em 1786 mas publicado dois anos mais tarde, não por coincidência trezentos precisos anos antes da encenação de Rohmer, e também conhecido por Trio Bowling, rezam as crónicas por ter sido composto em tarde de jogo ao ar livre seguida de confraternização em interior em clima, portanto, de divertimento que explica a sua tonalidade ligeira. Note-se que Rohmer não aceitava nos filmes música senão diegética, isto é incluída na cena, para não violar o chamado efeito de quarta parede, com o qual, todavia, Rita Azevedo Gomes se atreve a brincar praticamente em todo o filme.

E quanto a ela, claro, é Rita Durão, actriz com crescente projecção no cinema português, muito identificada, e não apenas pelo mesmo primeiro nome, com Rita Azevedo Gomes, com quem tinha já feito A Conquista de Faro, A Colecção Invisível e, já numa perfeita maturidade de ambas, A Vingança de uma Mulher e A Portuguesa.

Mas ela é ainda Olívia Cabez, num pequeno papel, Mariana, mas também na equipa técnica como anotadora, a quem compete trazer o guião mesmo na despedida, e evitar as intermitências com que paradoxalmente lida todo o filme. Ela mimetiza de certa maneira o olhar cuidador de Rita Azevedo Gomes.

Por isso mesmo não se pode dizer com toda a certeza se ela também, é Rita Azevedo Gomes, dado que não é vista ao contrário do que acontece no anterior Danças Macabras, e pelo contrário esgota-se por assim dizer na missão de dar a ver o texto, mais até do que aquilo que a câmara mostra. Mas o director de cinema não pode escapar a ser uma figura demiúrgica, na acepção do papel de deus ex-machina, e não apenas de trabalhador para o povo, que a etimologia consagra.

A forma de dar vida ao texto é como que testá-lo com todos os contextos que Rita Azevedo Gomes desdobra e imobiliza no tempo, atenuando a sazonalidade do dispositivo que Eric Rohmer criara para o magnífico e surpreendente equívoco em torno da peça de Mozart.

Rita Azevedo Gomes, porém, habita no filme um lado lunar. A realizadora na conversa após a exibição no Porto revelou que lhe foi permitido durante as filmagens dormir na casa onde o filme foi rodado. Assim surge o sentido dado aos desenhos que Jorge olha na solidão da noite e que são revelados apenas no genérico final, ou também aos olhos tapados do realizador na praia, ou principalmente à dança na escuridão com o porco em iluminação verde na sala vazia que como que contamina o filme, com a subtil ideia de morte que a pandemia convoca na fugaz presença de verdes máscaras cirúrgicas já no final - o cinema português curiosamente tem vindo a deixar para a posteridade as marcas da pandemia em filmes tão diferentes como Diários de Otsoga, Km 224, Um Filme em Forma de Assim e No País de Alice.

O filme, imaginado como teatro radiofónico gravado em palco num ponto charneira na sua obra, depois de A Colecção Invisível em que Bénard da Costa, cego, seguindo Stefan Zweig, sabia, ele como ninguém, que à palavra cabe preencher o que os olhos não vêem, teve a sua oportunidade finalmente em tempo de pandemia. Para chegar aqui Rita Azevedo Gomes teve de tolerar a imperfeição e apenas propor com ironia no fim, voltar ao princípio como diz Jorge. "Porque sim".

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