top of page
Foto do escritorAntónio Roma Torres

Tráfico - João Botelho (1998)

Banquete inventado num aterro de lixo 


Aparentemente “Tráfico” surge em descontinuidade com a obra anterior de João Botelho. Isto porque se trata de uma comédia e João Botelho é tido habitualmente como um cineasta “sério” e de grande rigor, tanto numa postura moral, como de um ponto de vista estético. No entanto não são difíceis de identificar os traços de continuidade deste filme com as longas-metragens anteriores, particularmente “Um adeus português”, “Tempos difíceis” e “Aqui na terra”. Realmente como nesses filmes, posteriores ao inicial “Conversa acabada”, João Botelho preocupa-se com um olhar sobre a sociedade portuguesa, com uma clara consciência política, mas privilegiando uma reflexão moral, e, partindo de um diagnóstico semelhante onde se detectam os podres de toda uma sociedade, traça um quadro onde personagens e situações se desenvolvem não numa lógica ficcional mas como estereótipos de fácil reconhecimento. Pode até considerar-se, pelo contrário, que a caricatura seria o terreno para o qual os filmes anteriores de João Botelho tenderiam.

Talvez se possa encontrar no título de um antigo conjunto de filmes de Erich Rohmer, “Contos morais”, mas não necessariamente no seu estilo de cinema, o programa ao qual João Botelho permanece fiel. Mas essa abordagem moral não ofusca as preocupações estéticas, numa lógica em que ambos os planos são indissociáveis e que talvez se possa inspirar num outro cineasta da “nouvelle vague”, Jean-Luc Godard, para o qual, aliás, também remete o tom visual do filme, luminoso e de cores bem vivas. Mas “Tráfico” tem muitas outras inspirações cinematográficas (do Tati que o título desde logo evoca, embora o tipo de humor seja bastante diferente, a um Buñuel que não se pode deixar de lembrar, muito principalmente em algumas associações de tipo surrealista, como as interferências sonoras, ou as transformações visuais) como que a deixar claro que João Botelho tem uma visível cultura cinematográfica, mas principalmente uma espécie de nostalgia de todas essas memórias que frequentemente são esquecidas pelo cinema de hoje.

Os personagens jogam um papel determinante em “Tráfico” porque pode dizer-se que é na sua composição que está investido grande parte do sentido do filme. Muito particularmente Amélia (Maria Emília Correia), esposa de um general que trafica armas, acaba por ter um papel central, em parte pela excelente interpretação da actriz, mas também por ser um personagem entre a tentativa de se passar por quem não é e a característica de espectadora de outras personagens com as quais se quer identificar. Repare-se que João Botelho uma vez mais (como sucedia,  por exemplo, em “Tempos difíceis” com Eunice Muñoz) mostra ser um dos cineastas portugueses mais capazes na direcção de actores e na valorização dos seus desempenhos, com outras boas interpretações, como são particularmente as de Rita Blanco, Canto e Castro, Paulo Bragança, José Pinto  e João Perry.

A ideia de tráfico, de armas, de sexo, de droga, de dinheiro ou de influências, parece ser o “leit-motiv” que organiza o filme, desde o casal de poucas posses que encontra droga enterrada na praia, ao negócio das armas e das organizações clandestinas, ou aos padres que vendem os santos da Igreja. Os generais, os banqueiros, os políticos, os padres ou os artistas de João Botelho não acreditam mais no seu papel suposto e movem-se por razões bem pouco nobres, parecendo precisamente Amélia ser a única suficientemente ingénua para poder acreditar neles. Essa encenação tem o seu momento mais divertido na luxuosa sardinhada (misturando o gosto popular com uma afectação própria dos grupos sociais emergentes nestes momentos históricos) onde o diálogo ironiza sobre as razões de uma melancolia lusitana que Botelho já identificara particularmente em “Adeus português”.

Há duas referências culturais, bem distintas aliás, que surgem em pontos capitais do filme. A primeira, relaciona-se directamente com o poder, já que é uma exibição a que assiste o político (André Gomes). Trata-se de um excerto de “Júlio César” de Shakespeare, onde se esboça a conspiração contra o imperador e toda a encenação, do estilo “peplum” dos filmes populares italianos sobre romanos à opção das actrizes, Isabel de Castro e Laura Soveral, para interpretar os personagens masculinos, parece tender a mostrar a inoperância de uma resistência ao poder instituído, como se verdadeiramente não fossem possíveis alternativas que não as de um discurso que se pretende exterior.

A segunda, no final do filme, prende-se talvez com o saber (ou a cultura) quando dois mendigos, José Pinto e José Eduardo, numa lixeira lêem, alto e com progressiva ressonância interior, o livro infantil “Os desastres de Sofia” da condessa de Ségur. Mas neste caso pode dizer-se que a ironia está bem no ponto para que todo o filme tende, englobando o didactismo moral de alguma literatura infantil e a ficção de uma determinada organização social, onde inclusivamente se simula um banquete (como o da sardinhada), sendo o chá e o leite não o que parecem, mas sim truques de faz de conta.

No fundo João Botelho ironiza sobre esse mundo de faz de conta, onde a realidade é ficção, não no sentido da narrativa, mas de uma encenação socialmente controlada.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias 10/1/1999

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Коментарі


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

bottom of page