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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Trás-Os-Montes De António Reis & Margarida Cordeiro (1976)

Trás-os-Montes é um filme belo e misterioso que recompensará por certo o espectador que o souber ver três ou quatro vezes. Isto porque o filme se funda na negação dum cinema da evidência.  As relações entre as várias sequências são sempre inacabadas e a uma nova visão se descobrem outras leituras de forma que Trás-os-Montes» é um filme que vai sendo vários filmes, que de cada vez que se vê é uma experiência diferente em que ao espectador se não pede a simples atitude de consumidor passivo de uma obra já feita. Esse é talvez o maior encanto do filme e essência do seu sentido poético cujas origens certamente se devem buscar na obra literária  do António Reis poeta. Um filme assim dificilmente   poderia ser exibido na feroz concorrência dos circuitos comerciais de exibição e por isso é de louvar a iniciativa da Cooperativa Moviola com o patrocínio da Direcção-Geral de Acção Cultural que proporcionou a aguardada estreia do filme no Porto com bilhetes   a um preço aliciante como promoção de um filme que se tem de recomendar vivamente.

Antes de mais deve dizer­se que Trás-os-Montes não é como o título poderá sugerir um filme de reportagem ou um documentário. Pelo contrário Trás-os-Montes subverte mesmo a distinção entre o cinema de ficção e o cinema documental na medida em que o filme não é também um filme de enredo no sentido mais ou menos clássico do cinema de ficção.  Trás-os-Montes é um filme que apela constantemente para os sentidos num elaborado trabalho de imagem e de som com excelente   fotografia de Acácio de Almeida, mas nem sempre correspondendo o registo sonoro às intenções visíveis dos autores. As palavras que nascem de documentos históricos, de  diálogos naturais, de falas mal recitadas são também material de um trabalho poético que consegue penetrar a memória individual e colectiva através da imaginação das crianças ou das recordações dos velhos sempre com atenção à cultura esquecida, mas evidentemente viva de uma região distante embora nas pequenas dimensões do nosso país. Mas o filme ultrapassa em particular os limites da etnologia para se encontrar com o próprio mito e os seus profundos significados de dimensão sem dúvida universal.  Por isso o filme se revela distante das terras e das pessoas e no entanto paradoxalmente íntimo   e isso na medida em que  nega  a  falsa  objectividade  agressiva das câmaras de uma sociedade tecnológica e  prefere a estética dos sentidos escondidos, o pudor da verdadeira poesia.

Cada sequência de Trás-os-Montes parece ser uma expressão condensada do filme total e em todo o caso a sua relação com as restantes sequências não produz qualquer efeito de redundância. Pelo contrário as articulações  complexas num espaço oculto exigem do espectador   uma  grande atenção. Aliás as dificuldades de leitura do filme poderão resultar da ausência de reflexão sobre o seu próprio código uma vez destruídos implicitamente os outros códigos dominantes.

Trás-os-Montes procura espelhar uma cultura dominada para isso se defendendo da linguagem dominante quotidiana verbal ou cinematográfica do sentido imediato, mas falso de palavras e imagens    que os miúdos encontram no vocabulário ortográfico ou no álbum        de fotografias e a que apenas a imaginação irá dar um sentido. Por isso num confronto de culturas se ouve o dialecto  de  um  lugar  "onde não se sabe o rei que agora reina  e mesmo o nome da dinastia é incerto" e todo o filme parece afirmar que há mais sabedoria numa lenda ou numa história de crianças nas leis mágicas de pombas brancas e negras numa gruta ou de ovelhas brancas e negras nas margens dum rio do  que  "nessas leis que temos como um segredo só confiado nobres  e poderosos para seu proveito mesmo sabendo que as leis que procuramos  não são mais que  puras  imaginações e talvez nem existam". Trás-os-Montes parte das memórias familiares onde a propósito duma «casa grande» a imaginação infantil se confunde com a evocação de uma outra infância para se misturar num tempo diferente talvez mágico que é o da memória colectiva daquilo que "o povo faz com as memórias do   passado (que quanto) as de agora confunde-as com as outras", mas onde estão presentes sem demagogia, mas em toda a sua dura verdade o trabalho das minas, a emigração e a doença.

Arcaico como uma tragédia grega da qual parecem sair o ritmo ou os rostos revolucionários com a teoria da relatividade em que se funda uma incerteza que não tem nada de cepticismo. Trás-os-Montes é a imagem de um passado e (é bom afirmá-lo) de um futuro na presença quase exclusiva de velhos e crianças. Filme complexo, Trás-os-Montes não pode (nem deve) ser explicado porque essa atitude digestiva é neste caso mais do que nunca a destruição da sua força e do seu vigor. Mas é antes uma obra que com paciência se poderá desvendar como o peixe preso na rede enrodilhada naquela cena do rio Douro ou que talvez mais fielmente à intenção dos autores se poderá apenas conceber à imagem da sequência fina! como um fumo branco na noite escura em que o comboio não se vê, mas adivinha. Essa é a fidelidade do filme à cultura do povo transmontano, a formas outras de conhecimento cuja afirmação constitui afinal um processo a uma cultura, a nossa citadina, bem-pensante, progressista, telemassiva.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 24/5/1977

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