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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Uma Abelha Na Chuva E A Promessa

RURALISMO E SIMBOLISMO

 

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Março/1974, pgs. 51-54

 

Abordando ambientes rurais, concretamente até na mesma região geográfica, o centro litoral, Uma Abelha na Chuva e A Promessa, são o testemunho dos caminhos paralelos de Fernando Lopes e António de Macedo, caminhos que se lançam desde o interesse comum por Domingo à Tarde de Fernando Namora, no começo de ambas as carreiras, projectado por Fernando Lopes, e realizado, com outro guião, por António de Macedo. Autores de sólida preparação teórica, revelam nestes dois filmes um perfeccionismo técnico e um domínio dos pormenores de construção narrativa que são características singulares na cinematografia portuguesa, habitualmente alheia de formalismos técnicos. É desde logo, e por contraposição a um cinema ruralista de índole neo-realista, uma outra intenção que se constrói principalmente num simbolismo que a austeridade de António Campos, Paulo Rocha ou Alfredo Tropa não permitiria. Pode-se ainda pensar que Mudar de Vida encerrava também uma leitura profética, uma espécie de exemplo duma mudança imposta do exterior e cujos factores não se limitariam certamente à agressividade invasora do mar. Mas o filme de Paulo Rocha retrata uma povoação circunscrita, Furadouro, e um problema concreto e local. Furadouro é uma povoação tão presente como Vilarinho das Furnas no filme de António Campos (e de algum modo podemos igualmente identificar Múrias em Pedro Só). Uma Abelha na Chuva e A Promessa foram também filmados em povoações concretas, mas os filmes não nasceram delas, antes pretendem uma generalização significativa. É assim que os cenários sofrem de algum modo uma estilização esteticizante (mais marcada em A Promessa) e as interpretações não se pretendem naturais ou pelo menos não são (Laura Soveral ou Guida Maria não deixam nunca os traços da representação teatral lisboeta, mas enquanto Fernando Lopes denuncia o teatro e a representação, António de Macedo disfarça as origens teatrais de A Promessa recorrendo a todos os truques da adaptação cinematográfica, mas particularmente à montagem, o que pode ser contraposto igualmente a O Passado e o Presente de Manuel de Oliveira).

 

O DESTINO COMO ESTÉTICA

 

A Promessa nasce da peça de Bernardo Santareno como pretexto. A adaptação não se traduz apenas por uma leitura, por uma encenação, mas trata-se verdadeiramente duma alteração do texto. São assim importantes: a definição dos irmãos de Labareda e das relações misteriosas que estabelecem na venda das relíquias, o conflito entre o antigo pároco e o actual como visões diferentes (e em alguns aspectos semelhantes) da actuação da Igreja (responsabilizando a instituição directamente na promessa, ao contrário da peça de Santareno), e o final que não é a luta selvática de José e Labareda, mas o encontro sensual de José e Maria do Mar, tendo Labareda morrido em luta com os irmãos.

 

É para esse final que todo o filme se constrói e em que todas as alterações se encontram coerentemente e não como meros arranjos fortuitos. Assim o quadro que no final se sobrepõe ao encontro sensual do casal e à morte violenta dos três ciganos, é uma representação do inferno que constituira um «leit-motiv» do filme, progressivamente mais demorado nas suas curtas preferências, acompanhadas das primeiras frases de um tradicional cântico religioso.

 

Esta montagem adensa a expectativa, constrói o ritmo, mas cria simultaneamente um sentimento de mistério e de ameaça que invade o espectador. Trata-se, porém, mais do que de uma pontuação temática a desvendar o sentido do filme, de uma construção que pela antecipação das acções seguintes se lança na interpretação do destino, que é o elemento clássico da acção teatral. Aliás grande parte dos passos narrativos mais elaborados obedecem precisamente a estas características de antecipação numa montagem habilidosa que se traduz principalmente nos dois momentos mais violentos do filme (a violação e rapto da rapariga na praia e a luta final), ambos ligados aos personagens estranhos à aldeia, que comportam uma sinalização ameaçadora (que na peça se limitava a Labareda). Trata-se portanto de uma estética do destino, palavra tão significativa dos sentimentos gerais do povo português e da sua cultura, que aqui antecipa as consequências às suas causas, desligando esta relação a favor do arbitrário e do inevitável (veja-se toda a sequência final de A Promessa), e que de um modo semelhante em Pedro Só reduzia as cenas de violência a um curto plano que ocultava toda a continuidade do seu desenvolvimento (a agressão inicial que explica a fuga de Pedro, a disputa na taberna e o atropelamento das últimas cenas).

 

A NOBREZA E O CLERO

Partindo de um romance de Carlos de Oliveira que esboçava os traços das várias classes sociais, da sua evolução e das suas relações de exploração e luta numa paisagem rural, Uma Abelha na Chuva perde grande parte dessa análise sociológica, que era subjacente à união deÁlvaro e de Maria dos Prazeres e que caracterizava a nobreza arruinada, a burguesia e o povo nas suas alianças e nos seus ódios, a favor de um carácter experimental que poderíamos traduzir por crítica literária, se valorizarmos a tentativa de exprimir o mundo estético da poesia de Carlos de Oliveira e a crítica da identificação entre realidade e ficção. Com efeito, ao conteúdo social prefere Fernando Lopes a evidência do espectáculo e da representação como constantes da realidade sociológica e da expressão artística (é assim a introdução da representação de «O Amor de Perdição» e do folhetim no final do filme). Outro é o caminho de A Promessa, que não tentando reflectir sobre o que na sua acção é convenção teatral, procura precisamente introduzir-lhe um discurso mais real, uma caracterização sociológica em vez de, como faria Fernando Lopes, evidenciar essa mesma convenção. 

 

É assim que o filme de António de Macedo se centra mais do que a peça sobre o universo religioso, não só na luta entre a moral e a natureza, mas ao mesmo tempo entreuma Igreja dominadora e obscurantista e uma Igreja mais atenta às realidades humanas que pretende promoção e não resignação (o que é patente no diálogo demasiado satírico e por isso mesmo superficial entre os dois padres). Atinge-se, porém, não apenas a Igreja Católica, mas as categorias míticas da religião e do conhecimento da realidade, em queassenta uma mentalidade mágica que é explorada pelo sentido comercial não só da troupe de ciganos mas do pároco antigo. E se o pároco novo é uma alternativa, expressão ténue da problemática de uma outra peça de Santareno, «A Traição do Padre Martinho», a repulsa perante a cena estática dos corpos nus de Maria e José (nomes carregados de um significado de pureza na tradição cristã) traduz uma mesma moral que não nasce da natureza humana e do aperfeiçoamento do amor vivo.

 

Expressão do universo religioso do povo português, A Promessa pretende atingir não apenas a superstição que cria as promessas, mas uma moral sexual pessimista que identifica sexo com pecado e que oferece como ideal a abstinência. Este é o tema vasto que transcende os traços populares da acção para se generalizar a uma sociedade. Por isso se não trata verdadeiramente de um cinema realista, etiqueta com que muitas vezes se qualifica erradamente o cinema de ambiente rural. O retrato popular é uma forma de dar expressão a uma problemática que se pretende universal e que inclui verdadeiramente a população urbana a que o filme pela sua linguagem se dirige. Infelizmente a estética do filme conduz a uma conclusão fatalista (o fatalismo e o desespero parecem o «leit-motiv» do cinema novo português) e não a uma crítica superadora.

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