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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Uma Vida Normal - Joaquim Leitão (1993)

SORTE, PERFUME E SEGUROS


Quando já próximo do final de Uma Vida Normal Miguel Martins (Joaquim de Almeida) vai para um quarto de hotel com uma prostituta de nome Paula (Teresa Roby) depois de três dias agitados em que se tinha envolvido com a amante, Paula (Margarida Marinho), após deixar a mulher Teresa (Maria Barranco) e depois com uma vizinha e por coincidência amiga de infância, também Paula (Anamar), ela comentando as três Paulas diz qualquer coisa como "três é a conta que Deus fez". Joaquim Leitão também terá feito a mesma conta e se começou Duma Vez Por Todas  e seguiu num caminho semelhante em Ao Fim da Noite, numa espécie de "thriller" à portuguesa, com ambientes sofisticados e diferentes planos de observação sinalizados pela moderna tecnologia audiovisual  que facilmente pode invadir a esfera pessoal e privada, com Uma Vida Normal (seu terceiro filme) terá dito que às três é de vez, e consegue na realidade um filme que se aproxima muito mais de pessoas reais e personagens com alguma solidez, mantendo o acurado trabalho narrativo que vem caracterizando o seu cinema, num fenómeno que no cinema português tem também alguma coisa de generacional.

Uma Vida Normal é o retrato de uma febre social na vida das grandes cidades, do quotidiano agitado de pequenos problemas comuns de um técnico de publicidade que vive a um ritmo alucinante, entre cápsulas estimulantes e comprimidos para dormir.

Joaquim Leitão mantém-se fiel à tentativa de transcrever para o cinema português uma das regras de ouro do cinema americano a de recusar a retórica e transformar em acção os conflitos dramáticos que põem em jogo os personagens. E isto apesar da construção do filme se estruturar num "flashback" reflexivo no diálogo do protagonista com um "barman" (Vítor Norte) na solidão da noite.

O filme vai articulando as várias linhas do enredo com naturalidade e embora como em toda a ficção e nomeadamente no "leit-motiv" das coincidências haja um clima artificioso, o que é facto é que o filme consegue aquele grau de verosimilhança que resulta de uma história bem contada e neste caso da competente interpretação de Joaquim de Almeida, talvez pela primeira vez com um papel que lhe permite soltar todas as capacidades desenvolvidas no contexto do cinema americano e nomeadamente numa excelente relação com a câmara. Mas deve-se dizer que Vítor Norte, Anamar e Margarida Marinho, principalmente, dão-lhe uma réplica adequa­ da, sendo que a história provavelmente se fragmentaria de forma inconsequente se não fosse a qualidade dos desempenhos e o ritmo que Joaquim Leitão impõe ao filme.

Uma Vida Normal é um filme ligeiro e uma comédia, embora provavelmente sem fazer o espectador rir às gargalhadas. O que quer dizer que aposta no entretenimento do espectador mesmo se a temática não é de todo inocente e o percurso do protagonista, pontuado também por um acidente cardíaco, um desastre na estrada e uma tentativa de suicídio de uma companheira ocasional, possa apontar para uma reflexão sobre uma opressão do quotidiano mesmo quando parece fluir numa vida sentimental pelo menos ao nível imediato gratificante, só resolvida na paragem forçada no final após o acidente. Mas Joaquim Leitão distancia-se de um tratamento melancólico, português, se quisermos em tom de fado, mesmo quando não resiste a esse "tique" do cinema português de introduzir na acção o ambiente musical de uma casa de fados.

Se Uma Vida Normal revela méritos que o cinema anterior de Joaquim Leitão, demasiado estereotipado na fórmula que espartilhava o realizador, ainda escondia, deve, no entanto, referir-se que falha no que se poderia chamar o clímax da acção, a produção dos três "slogans" publicitários que de certa maneira surgem do seu dia-a-dia (seriam uma reelaboração noutro contexto) e lhe vão permitir resolver o buraco financeiro em que se encontra. Mas o facto é que as frases em si, para a publicidade do totoloto, de um perfume e de uma companhia de seguros, são obviamente frouxas e banais, e mesmo o registo onírico que o filme já antes tinha apontado e que se repete no equivalente visual do estado de consciência após o desastre (uma boleia de moto com uma mulher  de sonho, bem ao gosto da estética publicitária), não se liga de uma forma adequada ao contexto do filme, já que Joaquim Leitão não associa no plano do real essa estética dos anúncios televisivos ao quotidiano de Miguel na agência de publicidade em que trabalha. Num filme que elabora com cuidado a articulação narrativa das diferentes cenas, o tratamento dessa parte do argumento constitui um falhanço quase imperdoável e tanto mais surpreendente quanto em filmes anteriores Joaquim Leitão sempre pareceu valorizar alguns efeitos da estética publicitária.

Mas Joaquim Leitão pode contar a seu crédito a agilidade com que resolve a maior parte das sequências, nomeada­ mente na cena da casa da praia, com a visita frustrada ao filho cujo aniversário esquecera, ou na cena do elevador, em certa medida na sequência dos equívocos que logo de início se começam a acumular. E mesmo quando o tratamento é mais prolongado, como na cena de amor amarrado à cama em que a sua masculinidade é ameaçada, antecipando o síndrome Bobbit que está hoje na ordem do dia, Joaquim Leitão sabe introduzir o factor surpresa no  interior da própria sequência. Se uma sequência como a da esquadra de polícia,  após  uma não intencional agressão à esposa e um confronto físico com o seu advogado e amante, é menos conseguida, talvez isso não se deva à imperícia de Joaquim Leitão mas à menor eficiência dos outros actores nessa cena, e o cinema deste género tem sempre que viver também da qualidade dos actores secundários.

Pode dizer-se que este terceiro  filme de Joaquim Leitão permite afirmar no fundo a viabilidade em Portugal de um cinema normal mas não medíocre, como foram no passado algumas tentativas de um cinema mais comercial, o que, obviamente, sem se constituir em modelo imperativo de produção, permitirá diversificar o próprio panorama da produção cinematográfica portuguesa, neste caso com a afirmação do produtor Tino Navarro, já com alguma continuidade em exemplos recentes como Amor e Dedinhos de Pé, de Luís Filipe Rocha, e Retrato de Família, de Luís Galvão Teles.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/3/1994 

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