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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Vale Abraão - Manoel De Oliveira (1993)



PARA ALÉM DO CAMPO E CONTRACAMPO

 

António Roma Torres, A Grande Ilusão, 17, Março/1995, pgs. 40-41 

 



A Bovary era um homem, penso eu - disse Lumiares. É a mulher a título da usurpação pelo homem.

Agustina Bessa Luís, Vale Abraão, pg. 235 

 

Ema disse: faltou-me a ciência da articulação. Não estudei bem o esqueleto humano nem como se mexe um braço e se vira a cabeça. Não é um hábito, é uma combinação perfeita entre a causa e o efeito. A relação entre todas as coisas, nunca vi como funcionava.

Agustina Bessa Luís, Vale Abraão, pg. 297 

 

 

A Ema de Manoel de Oliveira não é a Bovary de Flaubert, mas sim a "Bovarinha" como lhe chama Agustina. De certa maneira Oliveira inverte os pressupostos de alguns dos seus filmes anteriores, nomeadamente de Francisca, aliás significativamente também inspirado num texto de Agustina. E isso reflecte-se no registo da interpretação de Leonor Silveira e, por alargamento, dos outros intérpretes. Não se trata já de procurar o rasto de uma vida que escapa, como na cena necrópsica de José Augusto com o coração morto de Francisca nas mãos.

 

O movimento é, se quisermos, também inverso de O Dia do Desespero. Aí a morte, o suicídio, surge como uma necessidade do escritor habitando a sua própria ficção. Como diz Camilo, "sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país". A arte, o percurso dos dias do desespero entendido como um romance tão legítimo como os que celebrizaram o escritor, está no vértice de um triângulo abissal cujas outras referências são a loucura (o filho Jorge e os seus desenhos que evocam a postura autista do célebre quadro de Munch) e a morte (ausência de criação). Os actores, como em muito do cinema anterior de Oliveira, declamam mesmo quando fazem um depoimento perante a câmara. O efeito é intencionalmente diferente do processo idêntico que Bergman usou em A Paixão. Eles são sempre porta-vozes de um texto, sejam personagens reais vivos ou personagens de ficção já mortos. Eles pertencem a um mundo que não existe, que se chama cinema e apenas se pode entender como uma aproximação ao mundo real, que não se pode registar na sua globalidade.

 

Ema, com toda a vitalidade que Oliveira quis que Leonor Silveira desse à personagem, é de certa maneira uma referência crítica que prolonga O Acto da Primavera (e também O Meu Caso). O texto/Flaubert opera aqui de uma outra forma, como uma ressurreição, que é também um tema recorrente de Oliveira.

 

Agustina, por sugestão de Oliveira, recria Flaubert (e Bovary era ele, como confessou), e da literatura/morte se passa à vida (e ao testemunho duma sociedade duriense que une as experiências de Agustina e Oliveira). Cada Ema é a mesma Ema e uma outra. Como se das ficções/fixações renascesse a vida, imprevisível.

 

Ema (adulta) surge pela primeira vez num ambiente de morte, belíssima e associada à luz, às velas, no velório/encenação da morte da tia Augusta. E no seu percurso como que arde, se queima, se esgota, se gasta. E no final, no Vesúvio, , após os dias de chuva "ao terceiro dia fez-se sol", sendo a morte de Ema precedida do assombroso travelling sob o laranjal a sugerir um voo em que a morte surge como despreendimento , um passo em falso, um movimento interrompido. 

 

Entre a durabilidade do olhar, que o cinema permite, e o momento efémero da encenação, que é a vida, Manoel de Oliveira opta em Vale Abraão pela leveza que se não pretende fixar, ao contrário do olhar por trás das ligaduras na agonia do alferes de Non

 

Mas o fascínio de Ema vem também da forma como escapa ao jogo de oposições que Manoel de Oliveira deixou claramente desenhado em A Divina Comédia. Ema, como o Cristo ou o Lázaro desse filme anterior de Oliveira, é um personagem da totalidade, face ao qual qualquer complementaridade é problemática. Como escreve Agustina "ela queria começar pelo universal". Ema move-se num espaço de liberdade onde em certo sentido não há masculino nem feminino. Adequa-se com dificuldade ao que é esperado, como se expressa nos diálogos capitais com o jovem Semblano ou com Pedro Lumiares., personagens cuja improbabilidade (ou indefinição) se lhe aproxima.

 

Dir-se-ia que Manoel de Oliveira em Vale Abraão continua a perseguir um ponto de vista para além dos limites do campo-contracampo, que frequentemente se tem expressado como o lugar de Deus (o dono da "loja das tentações" de Aniki Bobó, os altifalantes de O Meu Caso, o director da casa de alienados de A Divina Comédia), mas por vezes, surge com toda a radicalidade no lugar do Homem, como na Ema de Vale Abraão, embora obscurecido por um inevitável campo de visão linear.

 

A estética (ou a epistemologia, ou a teologia) de Manoel de Oliveira talvez se entenda melhor através da história da esfera que ele próprio nos contou (entrevista com Manoel de Oliveira, A Grande Ilusão, nº 7, Março de 1989, pg. 25-26). Havia "um sujeito que afirmava que uma bola exposta e o interlocutor no lado oposto afirmava que era branca. Teimaram, teimaram. 'Não pode ser'. E um terceiro que estava entre os dois viu que a bola era metade preta e metade branca. Deste lado o que é objectivo é que a bola é preta, daquele lado o campo objectivo é que é branca e deste terceiro a bola é preta e branca. É uma realidade mais complexa. E por aí podemos torná-la ainda mais complexa. A possibilidade de ver um objecto, a forma concreta e objectiva, seria elevar o número de planos, de direcções (se metessemos o objecto dentro duma esfera) ao infinito, o que é impossível, para ver todos os aspectos, todos os lados, todo o objecto."

 

Essa é "a ciência da articulação", a "relação entre todas as coisas". 

 

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Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

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