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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Viagem Ao Princípio Do Mundo - Manoel De Oliveira (1997)

OBRIGADO MANOEL

 

Há uma cena capital em "Viagem ao princípio do mundo". Manoel (Marcello Mastroiani) está com os companheiros de viagem na margem do Rio Minho olhando para Espanha. Do outro lado (La Guardia) há uma paisagem indefinida. O motorista (o próprio Manoel de Oliveira com duas ou três fugidias aparições, mas inteligentemente mostrando que é ele que guia o filme e é uma sombra, um duplo, do cineasta que autobiograficamente, mas com um extraordinário pudor projecta em Marcello Mastroiani) vai buscar uns binóculos. A conversa parece frívola, com o humor mordaz que reconhecemos em muitos dos diálogos dos seus filmes. Entre ele e a actriz (Leonor Silveira) ora se estabelece um jogo de sedução, ora se pressente o conflito. E Manoel fala da sua juventude passada no colégio dos jesuítas, em La Guardia, no tempo da República. O edifício vê-se agora claramente destacado, mas é a óptica do binóculo que o aproxima (e que o destaca). Já não é só de memória que se trata, mas de cinema. A viagem de Manoel não pode ir ao lado de lá do rio, um outro tempo, um outro presente como se diz no diálogo do filme ("o passado é o presente do outro lado deste presente").Mas a palavra torna mais presente a experiencia. Manoel conta a emoção de quando miúdo se tinha de despedir e passar numa barca para o lado de lá do rio, com medo, de águas que lhe pareciam bem mais assustadoras que as que contemplam agora olhando o rio, com saudades antecipadas também. E termina recordando como ao longe o olhar do pai lhe parecia tranquilizador."Viagem ao princípio do mundo" é um filme aparentemente simples, filmado ao jeito de um passeio, mas talvez no máximo da maestria no uso da câmara que alguma vez Manoel de Oliveira soube evidenciar. A sua verdadeira essência está no olhar, que sabe tornar grandes gentes e lugares, memórias e lendas, como se conseguisse tocar não o fim de todas as coisas ou de todas as viagens, mas o que verdadeiramente é importante, o princípio.E do outro lado da câmara está a presença de Marcello Mastroiani, um Mastroiani velho e doente (morreria dois meses após as filmagens), mas também com uma dignidade de grande beleza que quase se diria ser impossível de filmar. E em todo o caso Manoel de Oliveira consegue filmá-la.Não é, como se poderia supor, um filme triste e decadente, mas antes o exercício de uma incrível vitalidade. Desde as primeiras imagens os longos e belíssimos "travellings" dão a ideia de um percurso, plenamente vivido: ora enquadrando o asfalto (onde a câmara desliza dando a noção do tempo como percurso a lembrar o longo plano da roda da carruagem em "O dia do desespero"), ora a paisagem (Oliveira a cada filme parece encontrar soluções diferentes, mas também são visíveis as continuidades, neste caso, por exemplo, com alguns planos de um filme já tão distante como "A caça"), ora, pelo contrário, o interior do automóvel (onde também os enquadramentos sinalizam diferentes personagens, com Diogo Dória enquadrado subitamente desfazendo o campo-contracampo entre Mastroiani e Leonor Silveira no lugar do comentador, cujo discurso é de um outro nível, e toda essa gramática cinematográfica remete certamente para "Benilde" mas no fundo para toda uma constante experiencia que a obra de Manoel de Oliveira exibe particularmente neste domínio).A viagem que Manoel de Oliveira propõe não é apenas a sua viagem e se o filme tem uma emoção particular que se polariza em Marcello Mastroiani (permitindo-lhe ao mesmo tempo representar e viver para um outro presente, e mesmo como pessoa aproximar-se da morte de que quase não fala mas que olha, por exemplo, na cena do cemitério), justifica-se como ficção na procura que um actor francês de origem portuguesa faz dos seus remotos familiares.Isabel de Castro é um outro polo do filme ombreando perfeitamente com a presença extraordinária de Mastroiani. O encontro com o sobrinho é magnífico no domínio dos tempos narrativos, desde a estranheza inicial até à proximidade.E se na primeira parte do filme (em que Mastroiani é protagonista) tudo gira em torno da despedida (como o jovem que na barca partia para o colégio), na segunda (em que Mastroiani é um observador geralmente silencioso) é o encontro, o abraço, que domina. Oliveira mostra como isso não é fácil, e resiste a deixar-se levar pelas emoções mais superficiais. O encontro, a história comum, exige um tempo, uma aproximação, a construção de uma linguagem que pode ser a do gesto e não a da palavra. "Ele não fala a nossa fala" vai repetindo Isabel de Castro, como se repetirá depois a mesma história do pai já antes contada. E o que o tempo do encontro consegue no filme de Oliveira é que para além do que a memória consegue reter e se resume numa mínima informação, seja uma outra presença, ou um outro presente, a emergir da história aparentemente banal.Sem atenuar a emoção que desta vez Manoel de Oliveira quis expressar, há temas que não podem deixar de remeter para a extrema coerência da sua obra.Por exemplo a linguagem, o "babelismo" da natureza humana de que já "O acto da primavera" falava e se pode rever em "O meu caso", "A divina comédia" e muito notoriamente nos dois filmes imediatamente anteriores, "O convento" e "Party".Ou a repetição, que já organizava "O passado e o presente", e se evidenciava em "Amor de perdição", em "Francisca", e em "O meu caso", por exemplo. "Viagem ao princípio do mundo" tira partido, não apenas da história do pai do actor francês que partira da sua aldeia na juventude, várias vezes contada, mas das frases repetidas em duas línguas e que dão uma outra dimensão à comunicação.Ou o olhar sobre a morte que parece querer definir uma fronteira verdadeiramente indefinível, por exemplo na agonia de "Non", muito obviamente em "O dia do desespero", ou mais subtilmente no final de "Vale Abraão", ou no personagem de Ricardo de "O passado e o presente", afinal vivo porque gémeo, ou no duplo do próprio cineasta que virá já do dono da "Loja das tentações" de "Aniki-Bobó", mas ganha uma especial força em "A divina comédia", em que Oliveira substitui numa cena Ruy Furtado, que falecera antes da conclusão do filme, e que enquanto personagem se mata na própria ficção do filme. E agora em plena sequencia reencontra-se no excelente alter-ego que Manoel de Oliveira pôde encontrar em Marcello Mastroiani (que já na sua carreira havia várias vezes feito esse duplo do próprio director, claramente em "Oito e meio" de Felllini, mais subtilmente com Angelopoulos ou no último filme de Antonioni)."Viagem ao princípio do mundo" é um belíssimo filme, certamente dos mais importantes da obra de Manoel de Oliveira. Que uma obra-prima possa ter sido feita por um cineasta de 88 anos de idade e se intitule "Viagem ao princípio do mundo" faz-nos evocar Martin Buber que escreveu que "ser velho é uma coisa gloriosa quando se não desaprendeu o que significa principiar". E o filme termina precisamente no nível da ficção no princípio de novas filmagens.

Há momentos em que queremos deixar-nos levar pelo sentimento, para além da análise crítica que em qualquer dos casos nunca é tão fria como se poderia supor. Talvez nunca um filme de Manoel de Oliveira tenha sido tão comovente, e principalmente sem qualquer espécie de comiseração, olhando a vida, o envelhecimento e a morte com uma rara grandeza. Por isso apetece terminar com um "obrigado, Manoel".

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 7/5/1997

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