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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Vidas - António Cunha Telles (1984)

A FICÇÃO E OS ACTORES

Há duas maneiras de ver (interpretar) um filme como VIDAS de António da Cunha Telles.  E logicamente dois juízos diferentes que se podem formular sobre o filme.

A leitura mais óbvia do filme e aquela que o discurso fílmico de Cunha Telles pareceu privilegiar é a de um filme crónica sobre Lisboa. Uma Lisboa de depois de O CERCO que o realizador pretende descobrir à distancia de uma geração. E neste retrato surge a droga como tema choque, realidade simultaneamente conhecida e ignorada que o filme pretenderia revelar a uma luz despida de preconceitos.

A tomarmos essa direcção teríamos evidentemente que nos desgostar de uma certa falta de rigor narrativo, da pouca consistência de alguns diálogos, da música redundante ou das interpretações irregulares. Se o filme pretendeu contar uma histona a verdade é que nem sempre funciona. E inclusivamente há uma dificuldade básica de opção narrativa. VIDAS aparece-nos como uma crónica num certo sentido jornalístico onde aparentemente se acompanham personagens num tempo em que não acontece notícia, em que a atenção percorre um significativo pano de fundo. Mas se as sequências na sua maioria se constroem coerentemente segundo esse objectivo (e dai uma conseguida proximidade do fluir dos personagens vistos à luz de uma compreensão empática que transcende as mais lineares  valorizações  morais  e constitui uma das qualidades do filme) no entanto Cunha Telles não resistiu aos pontos de tensão dramática que o tema lhe fornecia de bandeja e ai temos roubos, fugas, lutas e prisões que mais de acordo com a linha dominante do filme deveriam ter se confinado à ficção off das elipses narrativas.

Porque a seguir essa elaboração dramática falta em VIDAS o tempo certo de uma economia narrativa, o suspense de um modelo cinematográfico que Cunha Telles aparentemente recusa. Mas dizia eu que há uma outra leitura possível que infelizmente não está explicitamente inscrita no discurso fílmico, mas presidiu mais ou menos visivelmente ao fabrico de todo o filme e é sem dúvida muito mais interessante. A ponto de nos permitir esquecer um certo desleixo na maneira de contar a história ou até de nos permitir valorizar esse desleixo como o mínimo sinal visível de que não é essa finalmente a leitura que Cunha Telles valoriza para lá das mais imediatas aparências.

A historia seria então apenas o pretexto para alguma outra coisa que está em VIDAS e que de alguma forma prolonga e provavelmente amplia o que ao que parece já estava em Meus Amigos segunda longa metragem de Cunha Telles estreada em Lisboa imediatamente antes do 25 de Abril e nunca exibida nas salas comerciais do Porto. VIDAS seria assim uma espécie de psicodrama que funcionaria basicamente na relação entre os intérpretes e os personagens de alguma forma em duplo espelho que não visam evidentemente uma terapia pessoal com acção agressiva dos media na esfera intima dos actores personagens, nem isso seria legitimo, mas ilumina de uma outra forma o retrato dos personagens incorporando na ficção do filme a marca da imagem pública da maior parte dos seus intérpretes o que creio não ter sido propriamente uma opção de promoção comercial.

Por exemplo Carlos Cruz faz o papel de Vítor um traficante de droga mais ou menos simpático que sai com relativa elegância das variadas situações e é no fundo bom rapaz sem que isso o absolva das responsabilidades num submundo que implacavelmente faz as suas vítimas como virá a ser no final o caso de Lina (Júlia Correia) personagem fulcral que tal como a protagonista de O Cerco  põe em movimento todas as outras Ora embora o filme tenha sido realizado antes do concurso quert trouxe novamente Carlos Cruz ao top da popularidade televisiva o certo é que o papel do apresentador que explora uma certa situação de dependência (a televisão e o jogo de azar que são as duas referencias do concurso não são para o efeito muito distintas da droga) até aos limites do quase insuportável saindo se sempre disso com uma pueril e talvez ingénua elegância não esta evidentemente muito longe do papel que lhe coube representar no filme de Cunha Telles. Claro que em ambos os casos são papeis e representações, o que por não ser multo claro na estética naturalista e espontaneísta de Cunha Telles, pelo menos pelo que respeita à fase de rodagem, corre o risco de replicar no processo do próprio filme uma violência quase insuportável do mesmo teor. E daí o filme ter ficado mais na fase de um esboço em que apenas se pressente uma síntese estética que não foi ainda plenamente alcançada.

O mesmo se poderia dizer evidente mente de Sérgio/Hélder Costa, o intelectual em crise irresolúvel que valoriza talvez demais a descrição racional e didáctica da realidade que testemunha e que no final apenas pretenderá retratar na sua prosa, ou Diana/Maria Cabral, a mulher perdida que não parece convicta de qualquer solução que parta dela própria ou Carlos/Paulo Branco, o sinistro negociante capaz da protecção paternalista mas também do implacável ajuste de contas, ou ainda Pedro/Pedro Lopes, um  jovem na corda bamba entre a droga e a consciência do abismo.

E finalmente há a ternura, a complacência, a condescendência do olhar do filme sobre todos os personagens preferentemente encontrados no momento íntimo da amena cavaqueira em que praticamente não há rapazes maus que permitirá também tomá-los a cada um como um alter ego do próprio autor onde se interpenetram todos os mais profundos mecanismos da ficção e das confissões. E sendo assim sem dúvida também será o desafio a cada um dos espectadores que acabará por se rever nestes personagens que ao contrário de uma leitura mais linear e óbvia não serão já habitantes verosímeis de um determinado espaço sociológico marginal, mas papeis possíveis em muitos outros e suposta mente mais respeitáveis espaços.

Entre a ficção e a confissão, entre a representação e a naturalidade, entre a discrição e a intimidade VIDAS esta aí muito simplesmente a colocar pertinentes interrogações.

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 13/10/1984

 

 

A DROGA E A TERNURA

Reportagem no 13º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz (6 a 13 de Setembro de 1984)

 

O Festival de Cinema da Figueira da Foz teve a sua abertura oficial com a exibição do filme português Vidas, quarta longa metragem de António da Cunha Telles. Sem pompa na circunstância José Vieira Marques apresentou o cineasta e alguns dos intérpretes do filme com realce para o popular apresentador da Televisão Carlos Cruz que aliás não se fez rogado no uso da palavra ao jeito dos "shows" televisivos.

Vidas é um filme crónica sobre o polémico tema da droga, mas Cunha Telles definiu-o principalmente como um reencontro com a cidade de Lisboa que ele já filmara em O Cerco e Meus Amigos, mas cuja nova geração corre o risco de já não conhecer. O filme é assim um percurso aliás um pouco longo na senda de personagens de certa forma típicos de que o cineasta se acerca com respeito e até ternura o que de certa maneira amolece o filme principalmente no que respeita à violência e à dureza do submundo retratado.

Há também no filme a marca das gerações embora sem nada de típico conflito entre elas. Pedro (Pedro Lopes) e Lina (Júlia Correia) são jovens de vinte anos que metem heroína e cujos itinerários se cruzam e entrecruzam com uma geração de quarenta anos retratada no triângulo constituído por Diana (Maria Cabral), jornalista e mãe de Pedro, Sérgio (Hélder Costa), intelectual em crise, e Vítor (Carlos Cruz), simpático vigarista e traficante da droga talvez mais amado que profissional.

 

Bons malandros e má consciência

 

Com alguma redundância na narrativa e principal mente no uso do fundo sonoro e evidentes dificuldades em resolver dramaticamente as situações, Vidas, no entanto, deixa no ar uma mistura intrigante de desencanto (o pessimismo negro com que toda a acção é tratada) e de ternura (numa certa simpatia que mesmo os piores personagens não deixam de transmitir).

Bons malandros e simpáticos vigaristas, mas com pouco sentido de humor e principalmente uma má consciência de geração que se retrata, mas não se sabe analisar com lucidez -  são simultaneamente a virtude transparente e a fragilidade principal de uma obra que se desenvolve sem duvida na linha dos anteriores filmes de Cunha Teles

O perigo do filme é o da banalidade. Não há qualquer ideia marcante sobre a droga ou as gerações retratadas. Cunha Telles reconheceu mesmo que o seu cinema não é de mensagem. Tudo fica, portanto, dependente da expressividade dos planos, dos intérpretes, da linha estética da obra e aí a música de tanto querer ajudar não funciona e se a protagonista Júlia Correia na maior parte das vezes é uma presença com certa sensibilidade, mesmo ao nível das interpretações o filme é irregular por vezes também em virtude de alguns diálogos menos felizes.

Talvez a dispersão de uma galeria de sucessivos personagens retira também ao filme o fio condutor dramático que lhe pudesse dar mais força e vigor.

O tempo narrativo da crónica é, no entanto, diferente e o filme não se defende mal na proximidade com o fluir dos personagens. Mas porquê os pontos fortes da acção, os sonhos e os tiros e inclusivamente um final violento que narrativamente não se chegam a perceber muito bem?

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 8/9/1984 

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