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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Vilarinho Das Furnas E Pedro Só

DOCUMENTÁRIO E REALISMO

António Roma Torres, Cinema Português Ano Gulbenkian, ed. José Soares Martins, Março/1974, pgs. 43-49

 

Impedido principalmente por motivos financeiros o acesso à longa metragem e às despesas dos filmes de ficção, os cineastas portugueses encontram-se mais por força das circunstancias que por vontade própria confinados à curta-metragem, onde procuravam concentrar um talento que poucas imagens, tinha para se mostrar. A promoção turística e as encomendas de instituições e de empresas privadas constituíram desafio, estímulo, mas principalmente oportunidade de experiência. Daí que de entre os novos cineastas portugueses abunde uma filmografia limitada ou quase à realização de curtas-metragens que permitiam alimentar as esperanças do cinema novo português, várias vezes anunciado.

 

Libertos, portanto, da ficção, com possibilidades formais que em cinema de maior metragem acresceriam largamente os orçamentos, o cinema de documentário português foi ensaio e muitas vezes desabafo. Por isso, mais ou menos explicitamente, a visão dos autores, as suas mensagens ou simplesmente o jogo habilidoso (e intencional) da montagem sobrepunham-se à procura de uma realidade portuguesa. As razões principais encontram-se certamente no carácter de encomenda desse cinema onde o autor se exprimia subterraneamente.

 

UM CINEMA ETNOGRÁFICO

Vilarinho das Furnas, de António Campos, um cineasta vindo do cinema amador e marginal em relação à tradição de fabrico e consumo do cinema português aparece por isso mesmo como novidade. Cinema de atenção, pouco rebuscado, improvisado e sem grandes meios técnicos, colhe daí as virtudes como os defeitos.

 

Não estamos portanto na presença de um cineasta frustrado, de substituição, mas na opção de uma via madurade expressão cinematográfica.

 

Ao filmar os últimos dias de uma população em vias de desagregação pela construção de uma barragem, António Campos faz um filme totalmente localizado, verdadeiramente documental. Nesse sentido é um filme que só procura a emoção na verdade dos rostos, dos factos e das palavras (tantas vezes incompreensíveis). Não é uma obra que comporte um sentido, que faça um apelo, que deixe uma mensagem. Mais do que arte, António Campos faz o documento, a pesquisa etnográfica (baseando-se aliás como diz o genérico na obra de Jorge Dias).

 

Vilarinho das Furnas, aldeia comunitária, que a própria evolução das comunicações iria destruindo é objecto da câmara dominada de António Campos e é do próprio objecto que nascem interrogações e acusações.  Como por acaso Vilarinho das Furnas filma factos e diálogos (e a própria narração) sem qualquer ficção não lhe juntando sequer a visão pessoal do seu autor. É um filme sem comentário  embora a imagem metafórica do cortiço derrubado com as árvores para manipulação da madeira (imediatamente anterior à visita do Governador Civil de Braga) ou o lenço estampado com a Torre Eiffel distante do Paris dos emigrados, surjam como apontamentos intencionais saídos do conjunto.

 

A DISTÂNCIA COMO ÉTICA

 

Se compararmos, por exemplo, Vilarinho das Furnas com O Acto da Primavera de Manuel de Oliveira, compreendemos bem como ambas as obras intencionalmente documentais divergem nos seus finais. Manuel de Oliveira procura ligar todas as cenas, concluir e generalizar, ultrapassar o povo de Curalha. António Campos limita-se propositadamente a Vilarinho das Furnas: «O Manuel de Oliveira, quando há dias viu o Vilarinho das Furnas referiu-se precisamente a isso. Ele disse: «V. fez um filme que eu não faria; V. despiu-se da sua arte para fazer um filme totalmente imparcial, sem quase nada de seu...» «E só nessa altura é que tomei consciência de que o que ele dizia era verdade. Quando filmo faço-o pelo meu instinto, pela minha ideia, enfim. E a minha ideia era fazer um filme como se eu fosse de Vilarinho... Só tenho pena que o filme não cheirasse a terra...»[1].

E se, do outro lado, vemos a decisão comunitária («a segada do centeio será no dia em que o povo decidir»), os aspectos da sobrevivência económica de uma população pobre, etc., também a essas cenas preside uma câmara quepretende fixar, que não propõe sentidos.

 

 

A FICÇÃO COMO CONVENÇÃO

 

Semelhante é o itinerário de Alfredo Tropa, percorrido em diversas curtas-metragens de intenções mais ou menos etnográficas, a culminar no trabalho para a Televisão sobre a pesquisa de Giacometti sobre cantares populares portugueses:  Povo que canta. Assim Pedro Só, que é um detestável filme de ficção, com imensos erros narrativos e lugares comuns importados do cinema convencional, cativa precisamente no aspecto documental das terras de Trás-os-Montes com esses rostos populares das gentes de Múrias, com essa correcta preocupação do retrato das paisagens humanas e geográficas. A romaria e a feira são sequências simples de uma câmara distante, mas atenta, capaz de acompanhar o ritmo próprio desses traços da vida popular. Aí se esqueceo pretexto da ficção, aí se ultrapassa a citação e a ambientação (ao contrário de uma cena semelhante na abertura de O Recado, a romaria do Cabo Espichei, que está longe de alcançar a coesão da romaria de Pedro Só), para se dar a importância devida ao documento. Infelizmente o sentido narrativo de Alfredo Tropa compromete os resultados evidenciando António Montez e Jorge Ramalho, demasiado actores, incluídos na multidão.

 

A própria ficção pretensamente realista condiciona, neste filme como nos filmes de Paulo Rocha (Alfredo Tropa foi assistente em Mudar de Vida), a linguagem desse cinema ruralista, de algumas tradições no cinema de Leitão de Barros e Brum do Canto, que foi o modelo da primeira geração do cinema novo português talvez mais influenciado pela novelística neo-realista e pelas suas polémicas na literatura portuguesa que por movimentos cinematográficos semelhantes como o do neo-realismo italiano.  Do seu fracasso recolheu ensinamentos o novo cinema português dos anos 70 se pensarmos que mesmo filmes situados em ambiente rural como Uma Abelha na Chuva ou A Promessa se definem por parâmetros mais vastos.

 

A par do documental que um filme como Mudar de Vida inclui, no retrato da transformação da vida da população de Furadouro, condicionada por factores geográficos, mas também por factores políticos como a guerra e a emigração, a preocupação de construir uma ficção nos parâmetros convencionais, que pudesse competir com o cinema importado e maioritariamente divulgado entre o público popular da cidade ou das aldeias, trouxe-lhes sérias limitações[2].

 

Na direcção de actores e no estilo de interpretação encontra-se um exemplo objectivo, que vem já de Dom Roberto. Com efeito é entre os filmes que se pretendem reclamar de neo-realistas, que abordam a realidade portuguesa com intenções sociais de pesquisa e documento, que encontramos amplos elencos de actores de teatro (Raul Solnado, Isabel Ruth, Paulo Renato, Geraldo dei Rey, António Montez, etc.), com uma representação «correcta», muito diferente da naturalidade de uma Maria Cabral, um Miguel Franco, um José Cunha ou mesmo um Rui de Carvalho pretensamente antiteatral de Domingo à Tarde, ou da anti-naturalidade tão discutida de O Passado e o Presente e de Uma Abelha na Chuva.

 

ONDE ESTÁ A VERDADE DO CINEMA?

 

Parece, portanto, dever-se à falta de formação teórica e crítica que os filmes novos portugueses neo-realistas, conseguindo um bom resultado no seu aspecto documental, não tenham sabido ulliapassar o convencionalismo dos traços da ficção que se lhes pretendeu incorporar. A intriga destaca-se geralmente do ambiente, como se se tentassem somente traduzir esquemas narrativos do cinema comercial para um cenário português (e o cinema não é só cenário!). Não se encontrou precisamente o estilo narrativo que permitiria realizar a intenção ético-política que presidiu à formulação de um cinema português neo-realista.

 

Dir-se-á provavelmente que essas concessões na construção de uma ficção são o tributo a um cinema português praticamente inexistente, colonizado por uma importação desordenada e dominadora de todo o restrito mercado português. O quotidiano significativo, o acontecimento sem encenação, o retrato representativo (ainda quando todos eles inequivocamente construídos) perdem-se no drama ou no romance, restando apenas o documento, que Vilarinho das Furnas valoriza precisamente ao negar a ficção.

 

Não se trata aí porém de fazer um documentarismo na linha de Grierson e do cinema inglês, propondo sentidos, desvendando a poesia do quotidiano. Trata-se de retratar mais o extraordinário do que o comum desapercebido pelos olhares menos atentos, como faziam os autores de Night Mail com respeito ao trabalho do pessoal dos correios. Aliás a distância da câmara, fugindo da análise e do grande plano (que aliados à montagem determinam significados e intenções) é uma característica do cinema neo-realista italiano a pretender respeitar a liberdade de opção e selecção do espectador. Nem se trata, apesar dos objectivos etnográficos, de uma câmara provocadora que cria por ela própria a ficção ou se lança num cinema-verdade de tipo inquérito, como seriam apesar de tudo A Grande Roda ou Belarmino, na linha talvez do cinema de Jean Rouch. Tudo isso, no entanto, não adquire verdadeira tonalidade pois estes filmes neo-realistas portugueses têm aparecido desligados duma reflexão teórica que os suporte, que lhes crie a unidade de uma escola[3].

 

Aliás as questões de base do documentarismo, ou da verdade cinematográfica estão intimamente ligadas a todo o novo cinema português, gerado no documentário de curta metragem. Trate-se de uma intenção neo-realista, da adaptação de uma obra literária ou de um cinema-crónica, as ligações entre a ficção e a realidade, ou o problema de todo o cinema como ficção, é central à própria reflexão estética do cinema[4].

 


[1] António Campos (entrevista), «Vida Mundial», 4/6/71

 

[2] Repare-se como Glauber Rocha fala de um fenómeno semelhante no cinema brasileiro a propósito de O Cangaceiro («El cinema novo y Ia aventura de la creacion», em «Problemas dei nuevo cine», Alianza Editorial, Madrid, 1971).

 

[3] O documentarismo inglês dos anos 30, nasceu tanto da influência de Robert Flaherty como da de Dziga Vertov, afirma Sadoul. A tradição de Vertov é igualmente importante para compreender Jean Ronch e o «cininéma-vérité». Vertov merece toda a atenção como pioneiro de um cinema liberto da ficção (ver a propósito, George Sadoul, «Dziga Vertov», ed. Champ Libre, Paris, 1971). Sobre o neo-realismo italiano e a sua concepção teórica, baseada no privilégio do cinema para transmitir a realidade, ver André Bazin, «Qu'est-ce que le cinéma? IV», Les Editions du Cerf, Paris, 1962.

 

[4] Sobre a questão da ficção e da reportagem, a propósito do cinema directo ver Jean Louis Comolli, «Le Détour par le Direct «Cahiers du Cinéma», n.°s 209 e 211, 1969.

 

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