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Foto do escritorAntónio Roma Torres

À Flor Do Mar - João César Monteiro (1986)

FRENTE AO OCEANO


A estreia de um filme estabelece sincronismos que lhe condicionam a leitura. No caso de À Flor do Mar,  de  João  César Monteiro, ela acontece com dez anos de atraso e depois de estreados filmes posteriores do cineasta, particularmente Recordações da Casa Amarela e A Comédia de Deus. Há, portanto, que re-situar o filme, tanto mais que na sua própria acção há elementos de contemporaneidade que a passagem do  tempo, de certo modo, vem perturbar. O filme passa-se num curto período de tempo que segue ao assassinato do líder palestimano Sartawi, no Algarve, e sempre fica por resolver a ligação do "estranho" Jordan (Philip Spinelli), que vem perturbar a vida de três mulheres, Sara (Manuela de Freitas), Laura (Laura Morante) e Rosa (Teresa Viiiaverde).

De certa maneira, estas três mulheres paradigmáticas e o homem que "dá à costa", um pouco como se diz nos diálogos "Ulisses regressado a Ítaca", retomam um tema caro a João César Monteiro, particularmente referido a Silvestre e às reflexões sobre a natureza das relações entre os sexos e na abundância de citações mais ou menos relevantes do filme, César Monteiro dá mesmo o nome de Silvestre ao gato que presencia parte das cenas do filme.

Mas também a geografia é um elemento dominante do filme, aí seguindo um pouco o diálogo entre os montes e a planície de Veredas.  À Flor do Mar é um filme de beira-mar, sendo o Algarve a sua luz, o olhar que descansa sobre o mar e o mar que transmite tranquilidade e ameaça, que é um referente maternal, mas também simultaneamente da morte (aí, ainda como em Veredas, remetendo eventualmente para o cinema de Antonio Reis e Margarida Cordeiro) acaba por se ligar a um dos aspectos fortes do filme, a direcção de fotografia de Acácio de Almeida.

Em todo o caso, À Flor do Mar é talvez o mais sedutor e o menos conseguido dos lilmes de João César Monteiro. Sedutor pela beleza da imagem, do trabalho em torno de Laura Morante, de uma certa tendência para se acercar do espectador pelo lado da intuição mais do que pela mensagem intelectual.  Falhado na medida em que João César Monteiro não resiste à retórica dos diálogos, à complexidade quase autista do gosto das citações e a um certo desleixo na própria construção do argumento, de que um dos aspectos mais gritantes -  a prenunciar o papel do protagonista que João Cesar Monteiro terá nos filmes posteriores - é a dupla aparição do realizador numa cena pertencendo ao "gang" ameaçador que invade a casa e no final pacatamente sentado na esplanada, sem  que  os  protagonistas  lhe dêem atenção.

Apesar de tudo, João César Monteiro fica a meio caminho, não chegando a deixar levar-se pela fantasia do imaginário infantil, do mundo de piratas e aventuras, improváveis, que justifica provavelmente a dedicatória ao filho, então com três anos de idade, e também presente ao colo da mãe na referida cena da esplanada. Por aí se admitiriam, ainda citando os diálogos, personagens que saíssem "direitinhos" de um romance de Hemingway.  Por aí se perceberiam as referências múltiplas a Rossellini, do apelido de Laura à associação de referências ao nome Roberto/Roberl e até à qualificação da cidade aberta com que é citada a cidade de Roma, onde Laura vive, numa sequência aparentemente trivial de palavras.

O "estranho" do filme, que é talvez o homem que Sara já não quer mais, que Laura admite perder, ou que Rosa deseja, acaba por ver diminuída a sua "aura" pelas explicações mais ou menos policiais, pela própria interpretação cinzenta do actor e pela  tendência a esbater a construção dramática do filme num jogo interminável, e às vezes indecifrável, de extensos diálogos.

Em qualquer dos casos, se À Flor do Mar parece ser um  filme  de  transição na obra de João César Monteiro, a despedir-se da austeridade severa de Veredas e Silvestre, mas ainda sem conseguir o humor amargo e a exposição do personagem João de Deus, filme portanto      que não acrescenta grande coisa à obra de João César Monteiro, seria uma injustiça incompreensível que este filme morresse sem ter acesso ao destino normal que  é  a  sala de cinema (o que se tornou talvez mais necessário após a estreia comercial do filme em França há 2 ou 3 anos, aproveitando as atenções sobre o cineasta, particularmente depois do seu filme maior, que continua a ser Recordações da Casa Amarela. Felizmente que, como saído do mar, este filme acaba por cumprir o    seu destino, mesmo tratando se de um filme que sob    a aparência da beleza deslumbrante não deixa de evocar a morte (de Sartawi a Laura na cena em que se olha ao espelho numa transformação de luz que a leva a declarar 'estou morta").

Filme de luz e paradoxalmente de eclipse, talvez fosse mais da natureza de À Flor do Mar não chegar a ver a luz das salas de cinema, mas essa contradição só ganha sentido realmente pela existência de uma plateia e da própria possibilidade de exibição. Talvez por isso o anacronismo da estreia seja afinal o que lhe dá mais sentido. Trata-se talvez, como sublinha Vincent Vatrican nos "Cahiers du Cinema" n° 465, Março de 1993, da dedicação de João César Monteiro "para contar historias".

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 6/7/1996

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