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Foto do escritorAntónio Roma Torres

Índia - Telmo Churro

CONTAR UM PAÍS AO ESTRANGEIRO

António Roma Torres

 

Índia, filme de estreia de Telmo Churro (n. 1977) é o que se pode considerar uma obra tardia. O seu autor pertence a uma geração definida, um pequeno grupo com afinidades e interligações e em que se destaca principalmente Miguel Gomes (n. 1972), mas onde não se pode deixar de reparar em Manuel Mozos (n. 1959), figura de certo modo tutelar talvez porque ligeiramente mais velho e de certo modo curiosamente com uma afirmação também tardia, principalmente pelos problemas de produção que retardaram quase por uma década a estreia da sua primeira obra, Xavier (1991-2002). De certa maneira a sua inserção na produção cinematográfica portuguesa releva da influência do curso de cinema introduzido no Conservatório Nacional em 1971 e depois desenvolvido no curso de cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa a partir de 1983, a que a Cinemateca Portuguesa dedicou em Julho passado uma retrospectiva. Telmo Churro foi co-argumentista de A Cara que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto e As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, A Fábrica de Nada de Pedro Pinho e Ramiro de Manuel Mozos e encarregou-se ainda da montagem de Ruínas de Manuel Mozos, Tabu e Grand Tour, ainda por estrear, de Miguel Gomes e El Dorado XXI de Salomé Lamas, enquanto assinou apenas a realização da curta-metragem O Rei Inútil em 2013, tendo sido assistente de realização de Miguel Gomes em A Cara que Mereces e de João Nicolau na curta Canção de Amor e Saúde e na sua longa de estreia A Espada e a Rosa. O próprio declara que "tem desejo autoral, quando teve oportunidade fez uma curta e quando voltou a ter fez uma longa, mas não tem desejo de ter uma obra e de fazer rapidamente muitos filmes".

O que faz então correr Telmo Churro, como o seu determinado personagem caricaturado no cartaz do filme, guia turístico meio adolescente levando atrás em pequena equipa a turista brasileira, o pai marinheiro reformado e em terceiro plano o filho sonhador de aventuras de astronauta?

Uma escola de cinema prepara muita gente que nunca, porventura, realizará um filme. Jean-Claude Carrière, um dos mais excelentes argumentistas de sempre, dizia-nos numa entrevista (A Grande Ilusão nº13, Out.91/Mai.92) que "no mundo inteiro há muito poucos bons argumentistas...É evidente que certos argumentistas têm vontade de passar à realização...mas não têm razão porque há muita falta de argumentistas e não há falta de realizadores."

No cinema português, mais até no cinema documental que no de ficção, há uma certa indulgência de dar a todos a sua oportunidade de exercer o seu "desejo autoral", com isso desperdiçando-se até um certo ponto meios e tempo porque a expressão pessoal que se pode veicular no desenho ou no texto escrito assume um valor incomportável em artes que incorporam um certo tipo de fabrico industrial.

Jean-Claude Carrière co-realizou dois filmes curtos com Pierre Etaix, cineasta para quem escreveu os primeiros argumentos, e apenas um curto em nome próprio, por sinal premiado com o Grande Prémio do Júri em Cannes em 1969, mas mais não lhe fez falta para ser considerado um dos nomes grandes do cinema francês e mesmo mundial.

Há alguns méritos em Índia, título aliás repetido na história do cinema português, antes usado por António Faria, um cineasta também perdido depois noutros trabalhos, num filme sobre o ocaso do império rodado em 1972 e estreado apenas em 1975, mas pressente-se que o filme perdeu a sua vivacidade em mais de uma década que o distancia de A Cara que Mereces (2004) e A Espada e a Rosa (2010) que lhe terão servido de modelo. Como diz o título do filme de Miguel Gomes "até aos trinta tens a cara que Deus te deu..."

O dispositivo do filme estabelece Tiago (Pedro Inês) como um guia turístico, mas ele é mais o Gama que conta o país a um rei estranho, paradigma que duma ou outra forma acompanha o cinema lusíada que a todo o tempo nos parece assentar tão bem, mas que aqui glosa a perspectiva falhada que a sua história amorosa lhe parece ditar e que até o carro que não pega estabelece. A turista, Karen (Denise Fraga), por sinal brasileira, em luto pelo marido a quem, no entanto, envia cartas em cada marco de correio que lhe aparece, ouve com paciência os apontamentos de casa que Raul (José Manuel Mendes), o pai comandante da marinha aposentado vai conferindo despreocupadamente, enquanto a amada que abandonou o filho está posta em sossego num distante cenário tropical. A toada é comicamente suicida com Cândido dos Reis, almirante em perda na véspera do triunfante 5 de Outubro, e o poeta socialista Antero a falhar o primeiro tiro auto-lesivo. E as coisas vão de mal a pior, acabando no outro (não cronista) Fernão Lopes, soldado castigado na Índia por Afonso de Albuquerque e fugido em 1515 para a ainda deserta ilha de Santa Helena qual precursor de Robinson Crusoe que o não foi na sempre bem filmada Estufa Fria.

De certa maneira Telmo Churro interessa-se pelos perdedores da "nossa" história, como o Sancho II declarado rei inútil pelo Papa em benefício do acesso ao trono do irmão Afonso III, na sua curta de estreia dez anos atrás, mas o seu tom infantil e despreocupado pode assemelhar-se ao aluno cábula que baralhou tudo no teste e vai acumulando viagens de finalistas inconclusivas dos seus estudos a quem o professor de História Manuel Mozos passa a mão pelo ombro prognosticando o fracasso por insuficiente esforço.

No Miguel Gomes que parecia não querer levar-se a sério no filme de estreia de há já vinte anos adivinhava-se um merecimento posterior prestes a demonstrar-se e até o protesto pelo atraso no acesso à vida adulta que então desfasava da realidade uma nova geração do cinema português no "país de tanga" que Durão Barroso liderava, enquanto Telmo Churro parece simplesmente cortar a meta já muito atrasado do pelotão, mais um ano mal aproveitado numa adolescência interminável sem se querer importar muito com isso.

O futuro dirá se há no filme uma desajustada autocomplacência do desistente que O Rei Inútil caricaturava, e que prenderá também uma geração perdida, de João Nicolau (Technoboss) ou Gabriel Abrantes (Diamantino), ou se virá a ser capaz da autodisciplina e superação de um Ronaldo que desponte no pobre Diamantino de fraca pontaria ou sequer possa assumir o fado lusitano quási-trágico, com inspirado nome de santo ou poeta, que encarnou o provocador impenitente que foi João César Monteiro, capaz de atravessar heroicamente mas com génio verdadeiro as paradoxais trevas de Branca de Neve paredes meias com a loucura inspiradora de Walser ou Céline ou surgir imaculado a cheirar a carnaval, em vestes vampirescas ou marciais, do ameaçador porta-aviões americano atracado no Tejo em plena revolução (Que Farei com Esta Espada?) ou das ruínas do devastador incêndio do Chiado (Recordações da Casa Amarela).

O Fernão Lopes desfigurado pelo implacável Afonso de Albuquerque voltou a Lisboa e visitou o Vaticano depois (curiosamente!) de dez anos na deserta Santa Helena, mas perfez trinta anos de solidão depois dessa saída fugaz. De Telmo Churro não sabemos ainda.

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